Tem sido um espetáculo muito educativo. O país dos sussurros, dos arranjinhos e do uma-mão-lava-a-outra está horrorizado com o desplante de Carlos Costa. Imagine-se o descaramento: em vez de enterrar todos os segredos num buraco bem fundo, o ex-governador do Banco de Portugal decidiu lembrar o que sabe e contar o que viu.

Estão a acusá-lo de estar a ajustar contas de forma mesquinha. Estão a acusá-lo de estar a exibir uma flagrante falta de caráter e de honra. E, acima de tudo, estão a acusá-lo de fazer a única coisa que, pelos vistos, não é permitida a quem esteve no centro do poder e presenciou acontecimentos pouco edificantes — estão a acusá-lo de falar.

Quem os ouvir, pode convencer-se de que contar as memórias num livro em 2022 é o equivalente moral a fazer uma denúncia num depoimento à PIDE em 1962. Não vale a pena lembrar exemplos estrangeiros, porque isso obrigaria a saber ler livros em inglês, em francês ou em espanhol, o que pode não estar ao alcance de todos os espíritos que habitam a nossa bolha política. Mas talvez se justificasse perguntar aos expoentes da direita que se têm dedicado a estas intrigas o que pensam sobre os livros que Aníbal Cavaco Silva publicou quando deixou de ser primeiro-ministro e Presidente da República; ou sobre as memórias de Pedro Santana Lopes; ou sobre o livro que Pedro Passos Coelho está a escrever sobre o seu tempo no poder. Acham que também eles têm falta de caráter e de honra e se movem por ajustes de contas? E talvez fosse esclarecedor fazer perguntas semelhantes aos expoentes da esquerda. Leram os três volumes da entrevista biográfica que Maria João Avillez fez a Mário Soares? Leram os dois volumes que José Pedro Castanheira publicou com a colaboração de Jorge Sampaio? Leram a biografia de António Guterres, escrita com o seu dedicado apoio? Aí, o seu faro ético também detetou falta de caráter e de honra e ajustes de contas?

Suspeito que não detetou, até porque há uma coisa que faz com que Carlos Costa seja muito diferente de Cavaco Silva, de Santana Lopes, de Passos Coelho, de Mário Soares, de Jorge Sampaio e de António Guterres. É que o ex-governador do Banco de Portugal não tem guarda-costas partidários. Não estou a dizer, de maneira nenhuma, que o facto de estar fora da política seja um sinal de virtude — mas é, seguramente, um sinal de fraqueza. E, num país como Portugal, a fraqueza, como se sabe, atrai todos os ataques.

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A origem desses ataques tem sido comovedoramente abrangente: vai da direita dos interesses à esquerda radical domesticada pelo regime, juntando pessoas que, noutras circunstâncias, dificilmente se cumprimentariam mesmo que se cruzassem num elevador.

Carlos Costa não tem, seguramente, o monopólio da verdade. Sem dúvida nenhuma que há outras visões e outras versões sobre o que aconteceu (e sobre o que não aconteceu) naqueles anos — e essas versões e visões devem ser divulgadas, debatidas e discutidas. Carlos Costa também não tem, obviamente, um certificado de santidade — muitas decisões que tomou podem ser, devem ser (e, aliás, foram) criticadas.

Mas não é nada disso que está em causa nas reações mais vocais às memórias de Carlos Costa. O que está em causa é uma apologia do segredo. Aqueles que pregam uma cultura de opacidade querem esconder o quê? Querem proteger quem? São perguntas retóricas, porque na verdade todos conhecemos muito bem a resposta: querem esconder o que se fez e não devia ter sido feito; e querem proteger quem fez o que não devia ter feito.

P.S. O livro “O Governador” foi escrito pelo jornalista Luís Rosa, que para nossa sorte trabalha no Observador. Naturalmente, esse facto não tem qualquer relevância para estas opiniões.