Os direitos individuais foram uma conquista marcante da modernidade. Terão emergido na sequência das atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e acham-se hoje plasmados nas leis constitucionais que regem países democráticos como o nosso. Salvaguardam, fundamentalmente, o direito à vida, à autonomia e à autodeterminação de cada indivíduo.

Mas as sociedades são grupos plurifacetados de indivíduos, sendo que nem sempre o interesse coletivo se alinha com o de cada cidadão individual. Isto é, nem sempre a satisfação da justa autonomia individual se enquadra no superior interesse do coletivo que somos todos. Este é um tema grato à discussão ética, mas ingrato à expressão da política. Tomemos dois exemplos bem diferentes, mas, de certo modo, relacionados: a obrigatoriedade da vacinação para a SARS-CoV-2 e o direito ao voto eleitoral para os cidadãos em confinamento por contaminação pelo mesmo vírus.

Há cerca de um ano, vaticinei, em voz baixa, a necessidade de tornar a vacina para o SARS-CoV-2 obrigatória. Era, então, um sacrilégio, por violar os mais elementares princípios da autonomia individual. No entanto, era já sabido da história que as grandes pandemias só tinham controlo efetivo pela vacinação em massa, vacinação tornada mesmo obrigatória. O passado recente veio demonstrar, hoje com irrefutáveis bases científicas, o mesmo para a pandemia Covid-19. E Portugal é o exemplo bem sucedido de que a vacinação em massa salva vidas e nos protege individual e coletivamente da severidade da doença. Agora ouvimos países bem próximos de nós, como a Itália e a Alemanha, defenderem a vacinação obrigatória para controlar a quarta vaga desta pandemia. Porquê? Porque em situações extremas a força do interesse geral deverá prevalecer sobre a autonomia individual, naturalmente para salvaguarda de todos, que, juntos, somos o coletivo individual.

Domesticamente, deparamo-nos com outro dilema de colisão de interesses: por um lado, o inalienável direito ao voto, este também uma salvaguarda constitucional; por outro, a obrigação de cumprir confinamento domiciliário às ordens da autoridade de saúde, para evitar o risco de contágio pandémico, privando, assim, potencialmente um largo número de eleitores de votar. Em confronto, a privação do direito a votar e o risco de contágio para toda a população, acrescida da violação de uma regra de saúde pública, cujo precedente perigoso fará com que estas passem a valer só para o que vale e a interessar só para o que interessa.

É sempre difícil decidir eticamente sobre valores em conflito: se devemos obrigar a vacinar-se um cidadão para proteger toda a sociedade, se devemos impedir uns tantos de expressar o seu voto para proteção de todos os outros? Tipicamente, usamos os princípios da ética do utilitarismo social de Jeremy Bentham, que privilegiam o bem (suficientemente justificado) para a maioria, enquanto esgotamos todos os meios para compatibilizar esse interesse com a salvaguarda do ideal da autonomia individual que tanto protegemos.

Parece simples, e deveria ser, se a discussão fosse só com base na boa razoabilidade dos limites éticos e não se misturasse tanto com o parecer mal, parecer bem e com os interesses prevalentes da política e dos poderes. Poderes a quem cabe, afinal, o dever fiduciário e inalienável de zelar pelo nosso bem comum. E assim fica tudo mais difícil. Oxalá venha a prevalecer, desta vez, o bom senso.

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