Há mais de um século, já o primeiro grande cientista político, Moisés Ostrogorski, intitulava um dos capítulos do seu tratado clássico: «Os partidos políticos ao assalto do poder de Estado», considerando esta apropriação do aparelho de Estado por parte dos partidos como a maior amputação ao regime representativo. Infelizmente, nada mudou. Muito menos em Portugal, onde o PS faz do aparelho estatal o seu único instrumento político. Neste momento, porém, o governo encontra-se, tal como Ulisses na sua viagem de regresso a Ítaca depois da Guerra de Troia, entre os escolhos de Sila e Caríbdis!

De um lado, a pandemia que o forçou a fechar-nos em casa a fim de evitar a propagação do vírus; do outro, a maior queda da actividade económica do século XX num só ano. É a quarta crise desde o 25 de Abril. Sila é o vírus que não nos vai largar até à descoberta e difusão de uma vacina daqui a um ano ou mais. Caríbdis é a abrupta quebra económica e a perda de rendimentos da população. Só que o primeiro-ministro não é Ulisses.

Se iniciar o «desconfinamento» do qual a economia carece como pão para a boca a fim de funcionar normalmente, arrisca-se a manter ou mesmo aumentar o número de mortes das pessoas mais idosas e será por isso responsabilizado. Com efeito, dado o facto de a percentagem diária de óbitos oficiais não baixar dos 3% há uma semana, faleceram 200 pessoas em 7 dias, a esmagadora maioria das quais com 70 anos ou mais. Inversamente, se o primeiro-ministro não puser termo ao confinamento, haverá porventura menos mortes mas, neste caso, serão os rendimentos e os empregos das pessoas que cairão por aí abaixo, sendo o governo responsabilizado por esta decisão!

Resta-lhe uma terceira opção, como aconteceu com Ulisses, ao tapar os ouvidos dos remadores do seu barco aos cânticos irresistíveis tanto de Sila como de Caríbdis e ao fazer-se amarrar ao mastro do barco a fim de os remadores continuarem a remar ordenasse ele o que ordenasse! O equivalente a tal milagre seria a possibilidade de os países meridionais da União Europeia, como Portugal, receberem milhares de milhões de euros da UE sem encargos a acrescentar à dívida actual, que o PS pouco ou nada amortizou desde que tomou o poder há mais de 4 anos em que não parou de distribuir dinheiro que não tinha pelos apoiantes e eleitores.

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Seja como for, mesmo que a UE decidisse assumir, numa futura reunião ainda por marcar, a verba a distribuir por todos os países a fim de a economia mundial arrancar de novo, será preciso reconstruir sectores inteiros, nomeadamente os exportadores, os quais, porém, cada país tentará proteger por motivos óbvios … Será, ao fim e ao cabo, uma vitória de Trump, ou seja, o fim ou pelo menos uma séria travagem na globalização e o regresso ao nacionalismo económico, assim como o surgimento de regimes autárquicos e protecionistas à maneira de Salazar com que sonham, aliás, a extrema-direita e a extrema- esquerda, em suma, o tão reclamado fim do neo-liberalismo…

Atenção, porém: não é esse milagre desejado pelos adversários do capitalismo que o PS pretende. O que o governo quer, obviamente, é acolher de novo a massa de turistas que apenas fez caír a produtividade da economia portuguesa e promover com o dinheiro da UE obras públicas de duvidosa utilidade e nula produtividade como aquelas que vemos todos os dias. Simultaneamente, pretende nacionalizar empresas de rentabilidade duvidosa como a TAP e os CTT… Na verdade, o PS, como o PSD e o que resta do CDS, querem é voltar ao sistema antigo… e é isso que é improvável!

Não sou daqueles que sonham com esta extraordinária oportunidade de regressar ao passado ou, melhor ainda, chegar ao futuro, isto é, edificar um sistema sócio-económico inteiramente novo que satisfaça as esperanças recuperadas pelos ideólogos da «velha esquerda» (não há outra, acreditem), assim como existem forças culturais internacionais que alimentam a esperança que do mal saia o bem… Entre as «fakenews» sobre a origem do coronavírus e a ideia de aproveitar a crise provocada pela pandemia para reduzir o crescimento económico a fim de proteger o ambiente, há um mundo de possibilidades que não deixarão de ser exploradas após o fim da crise – se e quando tal acontecer.

Entretanto, no que respeita ao pano de fundo da situação actual, as palavras mais sábias são, porventura, as de António Guerreiro quando explica, primeiro, o pânico gerado por uma comunicação social cada vez mais incapaz de pensar antes de falar e, depois, como se tornou indesejável para muitos essa aceleração imprimida pela economia e a tecnologia às nossas vidas perante um desejo natural de fruição de uma vida menos mecânica e mais reflexiva como aquela que muitos temos tido oportunidade de experimentar…