Na sequência de mais um reaquecimento do conflito israelo-palestiniano vemo-nos novamente assolados pelas mesmo gastas alegações, com uma outra actualização para incluir os mais recentes crimes de que ambos os lados são tão profícuos. Uma parte destes argumentos não merecem grande atenção, sendo apenas devaneios ignorantes e racistas próprios de quem não conhece a região e a História, enquanto outros, por vezes até enunciados por personalidades interessantes merecem uma refutação mais cuidada.

Foco-me hoje apenas num tipo de discurso cada vez mais apregoado e que foi sintetizado de forma clara por Tiago Moreira de Sá, Professor da Universidade Nova e destacado quadro do PSD: “(…) entre uma democracia e uma organização como o Hamas, estou do lado da primeira”. Este tipo de argumento é extremamente apelativo e garante à partida bastante apoio, mas está absolutamente errado. Outros, como Domingos Lopes mostram-se semelhantes na essência, mas com os papéis invertidos colocando Israel como um agressor imperialista desculpabilizando assim qualquer acção feita pelo Hamas, independentemente do que estes algumas vez façam: “A mortandade de palestinianos indefesos por Israel é própria de quem despreza totalmente o outro povo e a sua cultura; é a barbárie tão característica dos regimes nazis”.

Devo dizer que discordo em absoluto de ambos. Aliás, julgam-se adversários quando na realidade mostram ser espelhos um do outro. Estes argumentos tribais, que tão terríveis resultados tiveram na Terra Santa, no Líbano, no Iraque ou nos Balcãs, limitam-se a dizer que “tudo o que os bons fazem é aceitável, mesmo que tenha consequências terríveis. A culpa é, por definição, dos maus”. Quer para a esquerda como para a direita os bons são a nossa tribo ou a tribo que elegemos representar sendo essa definição feita a priori e com tendência para resistir a quaisquer factos posteriores que a afrontem. O conceito que parecem resistir ferozmente é o de que ninguém deve ser julgado por ser criminoso, mas sim por cometer crimes. Não é relevante o que as pessoas são, seja no seu íntimo, nos seus valores morais, religiosos, políticos ou sociais, mas sim o que efectivamente fazem.

Israel, Hamas e Fatah já cometeram crimes suficientes para dar e vender, e insistem em continuar a engrossar a lista com novas atrocidades. O facto de Israel ser uma Democracia (ou, pelo menos, o que mais próximo conseguimos encontrar de uma na região) não significa de forma alguma que todas as suas acções sejam plenas de virtude e moral. Se a bondade de um regime democrático fosse alguma garantia, teríamos todos de apoiar cegamente o que soldados americanos fizeram aos prisioneiros de guerra iraquianos em Abu Ghraib, os massacres de Sabra e Shatilla cometidos por milícias cristãs maronitas libaneses com o beneplácito das tropas israelitas, com a invasão do Iraque em 2003 suportada numa falsa ligação entre Saddam Hussein e o 11 de Setembro, ou o escândalo do centro de detenção e tortura de Guantánamo Bay. Só porque alguém partilha do nosso sistema político, parece-se connosco, professa a nossa religião ou tem a nossa cor de pele não faz dela inocente ou culpada. Quem se coloca dogmaticamente de um dos lados, desculpabilizando todo e qualquer acto da sua tribo torna-se efectivamente um promotor dessa violência e presta um péssimo serviço a todos os que realmente procuram alternativas justas e pacíficas.

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Considero também um erro crasso quando, a partir de uma lógica semelhante à que acabei de defender, se conclui que “são todos culpados”. Os israelitas e os palestinianos não são duas claques de futebol que combinam encontrar-se num determinado lugar para andarem à pancada onde, no limite, poderíamos considerar que todos eles partilhavam da responsabilidade pela inevitável violência. São dois povos, grandes e diversos, e a maior parte dos indivíduos que os compõe não o são por qualquer escolha que tenham feito. De um lado Israel, formado pelos descendentes de centenas de milhares de sobreviventes do Holocausto, fugidos do que terá sido o maior crime alguma vez cometido, endurecidos pela experiência na Europa e decididos a nunca mais passarem pelo mesmo. Do outro, os palestinianos: centenas de milhares de refugiados e deslocados internos, vítimas das derrotas de 1948 e 1967, constantemente usados como peões nas guerras dos países vizinhos, nascendo e morrendo em campos de refugiados sem quaisquer direitos políticos ou esperança de uma vida melhor. E, quer em Israel quer na Palestina, morrem crianças pequenas que não poderão nunca ser consideradas culpadas de qualquer acto de guerra. Existem muitos culpados de todos os lados, mas o que não falta são inocentes usados como escudos humanos, carne para canhão e desculpa política para renovada brutalidade.

A questão da legitimidade da violência é um dos assuntos filosóficos mais melindrosos e com maiores repercussões na geoestratégia e política internacional. Embora seja um tópico que não pretendo analisar aqui em profundidade, existem algumas concepções que podemos ter como certas, nomeadamente a de que o ódio que é hoje semeado vai contribuir para maior violência no futuro.

Sou um defensor da criação do Estado da Palestina. Vivi lá vários anos, deixei lá muitos e bons amigos e guardo com saudade o tempo que lá passei, mesmo com todas as dificuldades e peculiaridades de viver debaixo de uma ocupação, sob constante ameaça de invasão, num território pobre e sem democracia. Desejo muito que a Palestina possa um dia viver em segurança, liberdade e progresso. Desejo exactamente o mesmo a Israel, sem tirar nem pôr: segurança, liberdade e progresso.

Idealmente, toda a região do Jordão ao Mediterrâneo seria um país secular (Terra Santa / Israel / Palestina) com todos os cidadãos iguais perante a lei, mas esta solução que é defendida por alguns moderados está longe de agradar aos nacionalistas radicais e fundamentalistas de ambos os lados. Provavelmente, tal solução pós-nacionalista nunca será viável. A solução de dois Estados também está impossibilitada com meio milhão de colonos judeus na Cisjordânia e uma muralha que engoliu muitos mais quilómetros quadrados para Israel. Os falcões de ambos os lados da barricada continuam a usar a violência para se legitimarem politicamente.

O general prussiano Carl Von Clausewitz, no seu famoso livro “Vom Kriege” defende que a guerra é uma continuação da política por outros meios. Nas últimas décadas, para o Hamas e para o Likud, a guerra parece ser o principal meio de fazer política. Para o Hamas, a legitimidade política e religiosa de continuarem a lutar quando todos os outros passam por colaboracionistas, enquanto para o Likud de Benjamin Netanyahu, o aumento das tensões entre as comunidades torna extremamente difícil que os partidos árabes no Knesset (parlamento israelita) consigam entrar numa coligação com possibilidades de o destituir.

Não há fim à vista, mas já ajudava se os poderes internacionais (em especial os Estados Unidos da América do qual todos os países da região dependem financeiramente) deixassem de apoiar ou condenar baseados em lógicas tribais e focando-se nos actos efectivos de cada um dos actores. E cada um de nós deveria fazer o mesmo: condenar condutas, não tribos. Não há crimes colectivos. Existem apenas acções e respectivos autores.