28 Juli 2020
Vou ter que interromper a nossa correspondência durante um mês! O excesso de trabalho tem preço! Tive uma rotura de úlcera do duodeno (stress a mais, café a mais), fui de requitó para o hospital Klinik Königstraße lá em Krefeld, fizeram-me umas transfusões de sangue, e agora tenho de ficar em repouso total, a meditar e a contemplar durante pelo menos três semanas aqui na Baviera, neste maravilhoso Schloss Elmau, onde até me imprimiram o nome no papel de carta deles, infelizmente acrescentando o honorário doktor. O que é francamente exagerado. Perdido nas montanhas, além da estonteante beleza alpina que me rodeia, o sol glorioso de Agosto e o céu sem uma nuvem fazem mais verdes as florestas, mais azuis os lagos, e emprestam à neve lá nos cocorutos o fulgir dos diamantes. A Fé fica reforçada com esta tranquilidade e este assombro natural. Além de que, desde que foi fundado, o Schloss Elmau tem permanentemente instalados nas suas suites mais sumptuosas para nos presentearem todos os fins de tarde com a sua arte, intérpretes de música erudita, que são os que passam pelas melhores salas de Berlim, Salzburg, New York, não esquecendo o fabuloso auditório da Gulbenkian com um programa anual do mais alto gabarito!
O CEO da Woschiems Otto Schindler e os meus colegas de Conselho são de grande confiança e prestígio, e a prova está que as nossas acções nem mexeram no DAX nem no Dow Jones, com a notícia desta minha “dor de dentes”.
Agora percebe por que não fui a Londres, de onde o William poderia ter voado comigo para Lisboa. E desculpe tê-lo decepcionado, mas vá continuando a apurar o seu golf aí em St Andrews por mais uns dias, que aquela viagem Londres/Lisboa irá ser reagendada em Setembro, so Gott will …
Enfim, contrariando as ordens dos médicos, e em esforço, confesso, estou hoje a escrever-lhe esta última missiva antes de Setembro. Tenho pena de interromper esta privacidade que mantenho com o meu caro William há tantos anos. Consigo sou capaz de me abrir como não o faço com mais ninguém, e escrever coisas que não me saem em mais nenhuma parte. Aliás, correspondendo à extrema franqueza das suas cartas!
Apesar de agora ter tempo para escrever nos jornais e revistas aquilo que penso, confesso que esta interrupção é saudável, pois andam a rabujar com opiniões ousadas que às vezes confesso ao William.
Tenho respeito por alguns empresários dos media (alguns!), mas aquilo sai-lhes caro. Apesar do custo e do alto risco do investimento, os jornais, as tvs e as rádios são para eles veículos de poder, nem lhes importa a conta de resultados, nem terem de se agachar perante “as sugestões” dos interessados, não querem saber dos ataques à liberdade de opinião, muitos jornalistas estão a soldo dos bancos, das empresas, e dos políticos, e andam apavorados e amordaçados pelo politicamente correcto! Há excepções, claro! Olhe lá na Lusitânia conheço uma, que não sei se o William lê, o Observador, um excelente jornal online que o aconselho a assinar. É independente, desassombrado, facts matter, a verdade é que interessa. Apesar do respeito que mostram pelas minorias, esse tal politicamente correcto é anátema!
E depois veja que até no New York Times despedem gente que dê sinal de simpatia pelos republicanos! Está feito ao bife (gostava de perceber a etimologia desta expressão tão lusitana!) quem lá escreva algo pró vida (como eu faço noutros forums), e contra o aborto, ou melindre as sensibilidades climáticas, o Black Lives Matter, o LGBT, ou as causas afins prosseguidas por infra-minorias activistas bem financiadas! No NYT, onde nunca escrevi, a livre opinião foi eliminada: ou se é politicamente correcto, ou fora! Por outro lado, o New Yorker há muito tempo que deixou de me interessar, tanto para lá colaborar, como fiz no passado, como para o ler: aquilo está partisan extremista, perdeu a aura da independência que tanto o prestigiou durante décadas. Resume-se às capas, que são espectaculares, aos cartoons que continuam excepcionais, tal como a crítica gastronómica, fácil, porque essa, apesar de ter temperatura e cor, não tem sexo! Ler qualquer outra coisa no New Yorker, aquilo vai-lhe parecer um Pravda à americana, enveredaranm pela correção política mais absurda! E isso ofende, pois sou dos que dão vivas à liberdade de opinião até que me venham fuzilar.
Enfim, estou exausto depois deste desabafo, e de facto não me sinto capaz de continuar a remeter para o William mais cartas como esta, que tanto prazer me dão a escrever. Por isso, não conte comigo durante umas semanas. Estou fora de jogo! Se me visse assustava-se: estou branco como a cal da parede.
Mas o melro da Woschiems continua a voar com êxito. E até Setembro o William não ouvir um pio a este que se chama Hans, e tem bico amarelo! Und bitte, wünsch mir Glück!
Freundlische abraços deste seu fiel
1st August 2020
Fiquei muito preocupado com as notícias! A sua secretária telefonou a avisar desse seu percalço, e tenho estado em contacto com ela, que me tem mantido ao par dos encorajadores progressos do Hans! Escolheu bem esse sítio aí na Baviera! Cheira-me que vai mandar vir o Padre Jesuíta aí da terra para fazer os Exercícios Espirituais do Santo Inácio de Loyola, com que o Hans me quer converter!
E aproveito para continuar a melhorar o meu swing. Imagine que no Monthlhly Medal que foi disputado no New Course, fiz três abaixo do par. Os meus parceiros também penaram. Estava um inverno desgraçado e uma ventania desabrida: repare só neste auto-retrato esboçado ao fim dum dia com uma temperatura média de 11 graus! Em Julho!!!!
Apesar de saber que o posso cansar, não resisto em contar esta fofoquice, de que vai gostar. Um velho amigo da City que mantém uma consultoria de peso na Lusitânia, explicou-me com transparente clareza a razão pela qual o Centeno é aplaudido por todos os lusitanos: “simples! é pelas mesmas razões que levaram o Salazar ao poder em 1928: num país falido, gostam de contas certas. E, naquela terra, a quem consegue tal milagre, levam-no num andor ao altar mor!”. É deliciosa a ironia: o Centeno igual a Salazar! Mas, por favor, se contar, veja lá a quem, e, sobretudo, não diga de onde vem! Ainda me lincham! A mim, que nunca fui desse tempo, a política aborrece-me até à raiz dos cabelos, sou um liberal cuja relação com o Estado britânico é apenas pagar impostos. Mas, valha-nos Deus, fico contente pelo facto de o ex-ministro das Finanças Centeno ir para o Banco de Portugal, uma entidade prestigiada. Além de ter a sorte de suceder a um incorruptível como o Carlos Costa, cujas pisadas se espera que ele siga, o Centeno não fez como o homem que amavelmente levou em cega e socrática obediência a pasta das Finanças para o abismo lusitano da austeridade. Esse, cujo nome creio era Santos (não estou a ser irónico!), ao transferir-se directamente do governo com g minúsculo, para CEO de uma obscura entidade financeira de capital angolano, quando vieram a lume as ignomínias financeiras dos accionistas, não quis perder o lugar e por lá ficou. Segundo li no The Sun, este herói, que de parvo nada deve ter, transferiu prudentemente as poupanças que tinha depositadas no “seu” banco de jardim tropical, para um banco almofadado pela inimiga língua castelhana, que tem vindo a perseverar na conquista da Lusitânia com armas eficazes e silenciosas. Enfim, quem me dera estar a pensar noutras coisas bem melhores que aquele Pais leva na alma!
Não sei se o Hans está ao par dos efeitos patéticos que o politicamente correcto está a causar aqui na Escócia. O caso da gretada Gulbenkian acaba por ser um triste e medíocre fait divers comparado com o que se passa por aqui. Há uma lei a ser cozinhada pelo parlamento escocês que quer modernizar a legislação quanto a crimes de ódio, em especial os que respeitam à orientação sexual. Sou protestante, mas até me dou muito bem com o Padre Católico Michael John Galbraith aqui de St Andrews, com quem às vezes jogo golf. Ecumenicamente também temos por parceiro o capelão protestante do meu club de golf, ambos excelentes jogadores. Pois imagine que tal legislação pode vir a considerar crime a posse do Catecismo e da Bíblia Católica, por considerá-los inflamatórios! Sim, por que o entendimento católico da pessoa humana, nomeadamente quando determinam que o sexo/género não são intercambiáveis nem questões fluídas ou sujeitas a alteração, pode vir a ser considerado crime! Entre mil, é mais um fenómeno “Cancel Culture”, este sim, verdadeiramente de bradar e implorar aos Céus misericórdia, de joelhos, dia e noite. A lei parece permitir que os Católicos acabem em tribunal se se opuserem a casamentos entre pesssoas do mesmo sexo ou se se opuserem a tornar mais fácil aos transgénero mudarem e verem a sua nova identidade legalmente reconhecida. A Escócia parece querer perseguir quem esteja em desacordo com essas “ortodoxias”. Pensar que a doutrina de Cristo, que é a do perdão e do amor ao próximo, pode ser criminalizada!!! Saiam os leões para devorar cristãos, não no Circo de Roma, mas no de Edinburgo!
Com tanto disparate, sinto-me silly até à medula. Apesar de aqui não haver season… E, meu caro Hans, vou telefonando à sua secretária para saber da saúde. E, claro, já percebi: até Setembro!
Kindest abraços do
Palavras Cruzadas é o título de uma série de cartas íntimas trocadas entre dois amigos. Um é alemão (Hans Hoffmann), residente em Krefeld, perto de Dusseldorf, e outro escocês (William Archibald), residente em St Andrews, na Escócia, mas ambos com casa em Portugal, país que os apaixonou. A correspondência tende a revelar um Portugal e um mundo vistos por Hoffmann na perspectiva da floresta, mas mais como árvore nas cartas de Archibald. Misturam nessa correspondência acontecimentos políticos, sociais culturais e económicos tanto portugueses como internacionais, revelando o seu cosmopolitismo. Usam de ocasional ironia em factos por vezes semi-ficcionados.