Estamos como os europeus do século XIV perante a Peste Negra ou os londrinos da Restauração perante a Grande Peste de Londres. Ou pior. Tirando uns negacionistas que minimizam o fenómeno ou se refugiam em delirantes teorias da conspiração – e no confinamento da quarentena há tempo de sobra para pensar, meditar e delirar –, é geral a incredulidade e terrível o choque perante o que está a acontecer. Como foi isto possível? E logo agora, que íamos a caminho da expectativa de vida dos 120 anos; que qualquer dia chegaríamos mesmo à idade dos Patriarcas. Como é que, de repente, nos vimos assim, metidos em casa, com o espectro de uma morte que, afinal, não será ‘a pedido’, enquanto os nossos médicos e enfermeiros – aqui, em Espanha, em Itália, na Europa, nos Estados Unidos – fazem o que podem e não podem com o que têm e não têm e há velhos a morrer nos lares e nos hospitais, sozinhos, para depois esperarem por vez para serem sepultados à pressa e em silêncio?
No século XIV, na Europa, houve, com a peste, uma vaga de cepticismo popular perante o que surgia como a ausência, a indiferença ou até a maldade de um Deus omnipotente e misericordioso. Hoje, enlevados por outras divindades, com muita retórica globalizante mas menos sentido comunitário, unitário e fraternal, com maior estranheza e espanto perante a morte e menos fé no outro mundo, com os olhos postos nas maravilhas do homem todo poderoso e da sua ciência e da sua técnica, maravilhas abundantemente pregadas e apregoadas pelas inúmeras réplicas de Pangloss ou de Topsius de A Relíquia que habitam entre nós, é também perante a peste que tudo parece desmantelar-se. Um vírus engendrado nuns mercados promíscuos da China que invisivelmente cresce, que insidiosamente se multiplica e que parece querer preparar-se para dominar o mundo, matando em grande profusão.
Um vírus que também ameaça desfazer a Europa, ou melhor, a União Europeia. Mais que a discórdia sobre a imigração, mais que a quebra da Grécia, mais que os “populismos” e os “nacionalismos”. Perante um perigo claro e iminente, perante uma questão que é, literalmente, de vida ou de morte, o que fez a União Europeia? Não se uniu ou solidarizou: entrou em violenta disputa. O Politico, o jornal de Robert Allbritton, comentava assim o estado da União:
“A reunião dos líderes, que deveria mostrar a unidade do bloco, mostrou, ao contrário, divisões agudas instigadas por velhos mas persistentes ressentimentos sobre o tratamento da crise da dívida da Eurozona há uma década; e pela mais recente revolta pela falta de vontade de outras capitais europeias de ajudar a Itália com equipamento médico.”
Assim foi. No fim de Fevereiro, a Itália pedira máscaras aos seus parceiros europeus; ninguém respondeu. Mais tarde pediu ventiladores pulmonares; zero respostas. Em 18 de Março chegava ao Fiumincino um Airbus A-350 da China Eastern. Vinha de Xangai com ventiladores, dezenas de milhares de máscaras e outros equipamentos. Ao mesmo tempo, chegava uma equipa de especialistas enviados pela Cruz Vermelha chinesa. ‘Isto é o que chamamos solidariedade’, declarou o ministro italiano dos Estrangeiros, Luigi di Maio, perante a pronta generosidade chinesa.
Mas se Pequim – por ter sido a terra de origem da pandemia e por ter silenciado a sua eclosão por razões de segurança de Estado e de prestígio, com grande prejuízo para o mundo – lançou esta operação para melhorar a imagem, mais impressionante foi a atitude da Rússia em relação à Itália: 15 voos especiais em aviões militares, oito equipas médicas, uma centena de especialistas de unidades de protecção nuclear, biológica e química, incluindo camiões equipados com material de desinfecção. E a ajuda trazia a insígnia “From Russia with love”.
Se pensarmos que a União Europeia tem a Rússia debaixo de sanções por causa da questão da Crimeia, sanções que atingem os sectores bancário e energético, o contraste da resposta à crise pandémica da UE e da Rússia e os seus consequentes efeitos na opinião pública é ainda mais flagrante. E a ajuda russa na pandemia não se limita à Itália, inclui os Estados Unidos, as antigas repúblicas da URSS, e o Irão, a Venezuela e a Coreia do Norte.
Também a Turquia, em resposta a um apelo da NATO, mandou ajuda médica para Itália e Espanha, com materiais sanitários produzidos na Turquia, enquanto a República Checa, a Lituânia e o Luxemburgo, no mesmo quadro da NATO, atenderam ao pedido espanhol.
Tudo isto é, em parte, simbólico, mas não deixa de realçar, por contraste, o profundo egoísmo, silêncio e descoordenação dentro da União Europeia, onde o grupo dos “financeiramente correctos” – Alemanha, Holanda, Áustria e Finlândia – faz barreira à solução dos chamados “CoronaBonds”.
Um dos pais fundadores da União Europeia, melhor, de uma união europeia, Jean Monnet, disse um dia que a Europa seria forjada nas crises e que seria da solução dessas crises que iria depender a sorte da unidade europeia.
E a União passou por várias crises, como a oposição do Presidente De Gaulle à entrada do Reino Unido e o chumbo do Tratado Constitucional nos referendos populares em França e na Holanda.
Mas chegada a presente crise, e uma crise geral e radical, a França e a Alemanha não só não responderam ao pedido desesperado de um Estado membro, como proibiram imediatamente a exportação do equipamento pedido. Levantaram depois a proibição, mas não consta que tenham feito muito para ajudar. E para agravar mais as coisas, dado o alto endividamento italiano (que o primeiro ministro holandês veio recordar a Roma, com o mesmo espírito generoso dos seus egrégios avós que nós, portugueses, bem conhecemos do o século XVII), Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu, foi dizendo, perante o agravamento dos juros italianos, que não era com o BCE baixar o spread das obrigações. Também já arrepiou caminho, mas o facto é que a recusa dos “financeiramente correctos” em aceitar uma solução conjunta, na forma de Obrigações emitidas colectivamente sob a chancela da EU, criou um forte ressentimento nos italianos e nos espanhóis, os povos até aqui mais castigados pelo flagelo do Covid-19.
Esta recusa de aplicar medidas excepcionais em tempos excepcionais mostra o pior da burocracia e tecnocracia da União Europeia e a mentalidade dos eurocratas em todo o seu esplendor. E, sobretudo, revela os profundos egoísmos nacionais dos mesmos governantes que todos os dias clamam contra o perigo dos ‘nacionalismos’ e dos ‘populismos’.
Será possível que alguém volte a acreditar na sua retórica humanista e humanitária em relação aos povos de toda a Terra, aos refugiados, aos imigrantes, aos famintos e perseguidos de todo mundo, ao planeta que sofre e aos animais que se extinguem se, na hora de ajudar, de salvar, os seus confrades e vizinhos europeus se mostram preocupados com o déficit?
Como, amargamente, comentou o Primeiro Ministro italiano, Giuseppe Conte, “se a Europa não se ergue perante este desafio sem precedentes, toda a estrutura europeia perde, para o povo, a razão de ser.” Assim vai ser, se não houver um rápido desbloqueamento da crise e se, como escrevia Larry Elliott no Guardian de 29 de Março, os cidadãos europeus concluírem que a ‘Europa é um projecto só para os tempos fáceis’, e que quando as coisas apertam, é com cada um, com cada governo, com cada Estado Nacional.
Pode ser que seja assim. A decisão é deles, dos “financeiramente correctos”.