Acabaram de ser aprovados na Assembleia da República vários projectos de lei que têm por objecto a despenalização e a legalização da prática da eutanásia e da ajuda ao suicídio. Esclareça-se que foi apenas uma aprovação na generalidade e que agora os projectos irão baixar à Comissão competente, que irá discutir e votar na especialidade os mesmos e só depois o texto final será submetido à votação final global dos deputados em Plenário.
Nas últimas semanas o debate público tem-se centrado nos grandes princípios e questões relacionados com o tema. Sem prejuízo da utilidade e pertinência desse debate, é, agora, tempo de conhecer e debater o detalhe dos referidos projectos de lei.
E quanto ao detalhe a primeira nota que quero deixar é que nenhum dos projectos de lei aprovados sequer estabelecem procedimentos que assegurem o mínimo de rigor, cautela, certeza e/ou segurança na aplicação da lei aos casos e condições que ela própria prevê.
Pensarão uns que é propositado: quanto mais vaga e imprecisa for a letra da lei, maior amplitude existirá na sua aplicação. Além do mais, tendo os partidos tido muito tempo para melhorar o textos dos projectos de lei que apresentaram em 2018, e não o tendo feito, então é porque não o quiseram fazer. Pensarão outros, no entanto, que é apenas incompetência e desleixo.
Seja qual for a causa, a verdade é que tais projectos de lei enfermam de múltiplas imprecisões, deficiências e insuficiências (muito em particular os do PS e do BE, que são, aliás, muito similares), que transformam o procedimento legal num procedimento administrativo meramente burocrático, mas ao qual se pretende conferir uma urgência, que se mostra totalmente desadequada à gravidade da decisão final a tomar e a executar no mesmo – a morte de uma pessoa.
Por isso, quando leio ou oiço alguém dizer que os referidos projectos de lei são muito rigorosos e que só em casos realmente excepcionais ou especiais é que será possível “antecipar” a morte de alguém a seu pedido, só me apetece dizer (não gritar) como a Joacine: É MENTIRA! Claro que, sendo rigorosa, nem sempre é mentira. Muitas vezes é apenas informação a menos ou desinformação a mais.
Neste artigo pretendo, assim, chamar a atenção para alguns aspectos (não todos) do projecto de lei do PS (o projecto de lei nº 104/XIV). Porquê o do PS? Porque, por razões óbvias, será certamente o texto que será servirá de base ao texto final.
Diz-se no artigo 2º do projecto de lei do PS o seguinte: “Para efeitos da presente lei, considera-se eutanásia não punível a antecipação da morte, por decisão da própria pessoa, maior, em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde” (nº 1). “O pedido subjacente à decisão prevista no número anterior obedece a um procedimento clínico e legal, correspondendo a uma vontade atual, séria livre e esclarecida” (nº 2).
Vejamos, então, quais são algumas das perplexidades que, tanto essa definição, como o procedimento legal previsto no projecto de lei do PS, me suscitam:
1. A utilização de conceitos indeterminados, vagos e imprecisos, como requisitos da aplicação da lei – “sofrimento extremo”, “lesão definitiva”, “doença incurável e fatal” e “vontade séria, livre e esclarecida” – impede uma verificação objectiva e rigorosa dos mesmos;
2. O requisito do “sofrimento extremo”, na ausência de especificação da lei, tanto poderá ser físico, como psíquico, admitindo-se assim o sofrimento existencial;
3. A colocação da existência de uma “lesão definitiva” (qualquer uma, nem sequer uma lesão grave), ao lado das situações de doenças incuráveis e fatais, permitirá a aplicação da lei a um sem número de casos em que não estará em causa uma doença incurável e fatal, retirando-se, assim, à lei o seu alegado ou pretendido carácter excepcional ou especial;
4. Apesar de se dizer que a doença incurável tem de ser “fatal”, não se delimita ou identifica qualquer horizonte temporal para a previsível ocorrência dessa fatalidade, o que poderão ser anos;
5. O médico a quem é apresentado o pedido de “antecipação” de morte, designado por «médico orientador», é escolhido livremente pelo doente, não tendo de ser o seu médico pessoal ou de família ou sequer especialista na patologia que afecte o doente (pode ser mas não tem de ser), o que acarreta, desde logo, uma total desvalorização da prévia relação médico-doente e de todo o passado clinico do doente;
6. Não são estabelecidos nenhuns requisitos formais (ex: elementos de identificação, doença de que padece, historial clínico, etc.) para o pedido a apresentar pelo doente ao médico por ele escolhido, a não ser que seja um “documento escrito, datado e assinado pelo próprio” (e nem sequer se exige que essa assinatura seja feita na presença do médico);
7. O doente não tem de entregar ao médico orientador, conjuntamente com o seu pedido, o seu processo clínico, acompanhado dos exames e consultas anteriormente realizados, sendo que é esse processo clínico que atesta a existência de uma “doença incurável e fatal” ou de uma “lesão definitiva”;
8. Não está previsto que o médico orientador, antes de emitir o seu parecer sobre se o doente cumpre (ou não) todos os requisitos previstos na lei, tenha de ou sequer possa mandar realizar quaisquer exames destinados a confirmar a patologia do doente e a sua situação clínica;
9. É o médico orientador quem escolhe livremente o médico especialista na patologia que afecta o doente, médico esse que, tal como o médico orientador, pode nunca ter conhecido o doente;
10. Não está previsto que o médico especialista, antes de emitir o seu parecer sobre se o doente cumpre (ou não) todos os requisitos previstos na lei, tenha de realizar consultas com o doente e ou tenha de ou possa mandar realizar quaisquer exames, destinados a confirmar a patologia do doente e a sua situação clínica;
11. A emissão de um parecer por um médico especialista em psiquiatria nem sempre é obrigatória, só o sendo quando o médico orientador e/ou o médico especialista tenham dúvidas sobre a capacidade da pessoa para formular o pedido ou admitam que ela possa ser portadora de uma perturbação psíquica que afecte a sua capacidade de tomar decisões, revelando uma vontade séria, livre e esclarecida, sendo certo que só um médico especialista em psiquiatra tem competências para aferir se o doente padece ou não de uma doença mental e se a sua vontade é realmente séria, livre e esclarecida;
12. Os médicos (orientador, especialista e, se for o caso, psiquiatra) só poderão falar com os familiares e amigos do doente se este autorizar, o que acarreta uma absoluta e inadmissível desvalorização das relações familiares e sociais do doente;
13. Apesar de se dizer que a decisão do doente, em qualquer fase do procedimento, “é indelegável”, não deixa de se prever que, “caso o doente que solicite a antecipação da morte esteja impossibilitado de fisicamente escrever e assinar, pode, em todas as fases do procedimento, fazer-se substituir por pessoa por si designada apenas para esse efeito”, o que abre a porta para que a vontade manifestada não seja a vontade do doente mas sim de terceiros, sempre que ao longo do procedimento for solicitada a reiteração da vontade do doente de morrer;
14. Aos profissionais de saúde que se recusem a participar no procedimento é “reconhecido” o direito à objecção de consciência mas é-lhes exigido que comuniquem ao doente a sua decisão de recusa num prazo não superior a 24 horas, tendo o dever de especificar as razões que a motivam, e tendo ainda o dever de manifestar a sua objecção de consciência num documento escrito e assinado e de o enviar ao responsável do estabelecimento de saúde onde o doente está a ser assistido e o objector presta serviço, se for esse o caso, e com cópia à respectiva Ordem profissional;
18. Apesar de serem estabelecidos vários deveres que deverão ser respeitados pelos profissionais de saúde que intervenham no procedimento, não existe qualquer tipo de controlo do cumprimento dos mesmos, sendo certo que a IGAS, a quem a lei atribui competência para fiscalizar os procedimentos, apenas é informada da existência dos mesmos após terem sido emitidos todos os pareceres favoráveis e o doente ter consignado por escrito a sua decisão final de morrer, sendo dada à IGAS a possibilidade (?) de estar presente na hora da morte do doente;
15. A Comissão de Verificação e Avaliação dos procedimentos, a criar, nomeadamente, para dar parecer sobre o cumprimento dos requisitos e fases anteriores de cada procedimento, será composta por 5 pessoas – um médico, um enfermeiro, dois juristas e um especialista em bioética -, o que é manifestamente desadequado aos fins para que é criada, uma vez que a verificação do cumprimento dos requisitos que a lei faz depender o deferimento do pedido de morte, pressupõe o domínio de conhecimentos na área da medicina e não em qualquer outra área científica ou de conhecimento;
16. Não se prevê que a dita Comissão, antes de emitir o seu parecer, tenha de ou sequer possa conversar com o doente e/ou possa mandar realizar quaisquer exames, destinados a confirmar a patologia do doente e se a situação clínica cumpre todos os requisitos definidos na lei;
17. O prazo que é dado à dita Comissão para emitir o seu parecer – 5 dias úteis – é chocante e manifestamente insuficiente para que possa ser feita uma verificação do cumprimento dos requisitos previstos na lei, e para que possa, com um mínimo de rigor, ser emitido o parecer ou decisão final que levará à morte do doente, o que transforma o parecer da Comissão num acto ou visto puramente administrativo e burocrático;
18. No caso de ser emitido um qualquer parecer desfavorável à concretização do pedido de morte formulado pelo doente, o procedimento em curso é de imediato cancelado, mas poderá ser reiniciado com novo pedido de abertura, sem qualquer limitação do número de vezes;
19. No caso de serem emitidos todos os pareceres favoráveis (do médico orientador, do médico especialista e, se for o caso, do médico psiquiatra, e da dita Comissão), não se compreende como é que é a vontade do doente o elemento determinante da escolha do dia, local e método a utilizar para a “antecipação da morte”, ainda que o seja em combinação com o médico orientador;
20. Por fim, os profissionais de saúde que intervenham no procedimento tanto poderão trabalhar em clínicas ou consultórios privados, como em estabelecimentos do SNS, sendo que, neste último caso, terão os doentes que pedem para morrer prioridade de atendimento relativamente àqueles doentes que querem viver?
Dito isto, pergunto: alguém ainda tem coragem de dizer que o projecto de lei do PS é rigoroso e que só se aplicará em casos excepcionais ou especiais? Eu não tenho.