Marcelo Rebelo de Sousa anunciou logo na sua tomada de posse como presidente da República, em 2016, que ali estava «pelo Portugal de sempre». Não nos podemos queixar: ele disse ao que vinha. Tornou-se, por isso mesmo, o Presidente incontestado, o preferido do situacionismo, do país imobilizado, em crise há 25 anos, cada vez mais dotado de instituições frágeis e permeáveis a todo o tipo de abusos, estagnado, empobrecido.

Conseguiu, não bastando o resto, ser cúmplice de abusos e instigador de sucessivas violações constitucionais: o que Marcelo permitiu e promoveu durante os dois anos de pandemia, em matéria de direitos, liberdades e garantias, foi um passo de gigante no processo de corrosão da democracia. E foi, já mesmo na sua antiga pele de analista de táctica política, mas também de antigo dirigente partidário, co-responsável, entre tantos outros génios da nossa praça, pelo caminho de degradação das instituições, da política e da sociedade.

Foi ele, gabe-se o que há a gabar, que é preciso ser justo, o primeiro dos políticos portugueses a perceber que a política podia ser exclusivamente espectáculo e entretenimento, totalmente desprovida de substância, de ideias, de princípios, de construção de futuros. Compreendeu, no fundo, que podia fazer do espectáculo a própria substância. Tornou-se uma espécie de populista do bem, versão aparentemente soft e inofensiva dos outros populistas que ele próprio não aprecia.

Era, pois, inevitável que se tivesse tornado num Presidente da República que mais não fez do que nivelar a autoridade da chefia de Estado pelo índice de popularidade, o que o colocou mais perto de um entertainer do que de um político, e a sua dependência da popularidade acabou por se tornar mais nociva que benéfica para as instituições.

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As televisões excitam-se há anos com este marcelismo versão pop, uma espécie de programa da manhã institucionalizado e elevado à representação do Estado, porque as televisões há muito que deixaram de exercer as funções do jornalismo, de perguntar, de questionar, de duvidar, de confrontar e, sobretudo, de exigir, porque perceberam que é o entretenimento que ainda vende o que vende.

Sendo justo, mais uma vez, Marcelo ofereceu o que tinha para oferecer. A sua carreira célebre e popular no comentário político era – é! – apreciada pela generalidade das pessoas: as que aprenderam a apreciar o espectáculo dominical de palavreado, mas também a própria imprensa, que à partida tinha obrigação de ser ligeiramente mais exigente do que um espectador de variedades. Foram muitos anos a estudar tácticas, estratégias, mensagens nas entrelinhas, interpretações sobre o que fulano ou sicrano quereriam realmente dizer, informações e papelinhos, uma especialização constante na intriga e no mexerico lisboeta, enfim, uma especialização televisiva em inutilidades. A substância política passou ao lado de décadas de bisbilhotice política. Pense-se no assunto uma semana inteira e não se encontrará uma ideia vinda daquelas bandas (com excepção, concedo, para o aborto, numa posição que foi sobretudo moral e religiosa e não política). Mas parece que o estilo é apreciado. Que dizer, afinal?

Um eleitorado na ressaca de uma bancarrota, estruturalmente envelhecido, conservador e pouco ambicioso, viu nele o remédio perfeito para essa mesma ressaca. Ao lado de um António Costa que se tornou Primeiro-ministro graças a cínicos malabarismos partidários, que anunciava felicidade a rodos e se tornara, assim, o parceiro ideal da estupidificação geral dos espíritos da pátria, os portugueses viram nas excentricidades do professor que se senta em Belém, do professor que arranja esquemas para ir a banhos, do professor que tira os calções na praia, do professor que vai às compras de calções, do professor que vai a pé pelas ruas, que beija, que abraça, que tira retratos, que encanta multidões como o Ronaldo encanta as bancadas e o Goucha encanta as velhinhas, os portugueses viram em tudo isto, dizia eu, a confirmação do que pretendiam: acima de tudo, que nada mudasse, mesmo que essa mudança anunciasse um futuro melhor, e que a política os divertisse, quando estavam habituados a que ela os aborrecesse.

Podia ter tido a seu favor a atenção que foi dando aos sem-abrigo, por exemplo, uma das bandeiras que levantou. Mas o número de sem-abrigos duplicou desde 2015 e Marcelo não conseguiu, apesar da sua presença diária nas televisões, encetar um discurso que apontasse o óbvio: o país não está melhor e, sim, podia estar muito melhor. É fraco resultado para uma bandeira política, mas quem se atreveria a perguntar ao genial professor, político de primeira água, como raio é que não se apresenta um resultado visível num dos poucos temas que tomou como importante?

O país não precisa de palavras de consolo, beijos e abraços, ou de ver permanentemente o seu Presidente a circular por entre as pessoas a tirar retratos. Precisava, sim, de um Presidente que tivesse uma ideia de políticas públicas que proporcionassem mais riqueza às pessoas e que substituíssem o miserabilismo militante, de mão estendida à Europa, que revelassem algum gosto pela vida independente e livre de ministros e secretários. Tal como não precisa de uma betoneira retórica que anuncia, a cada evidência de que o Estado foi capturado por uma clique de inúteis sanguessugas, que «é preciso apurar o que se passou», quando toda a gente sabe que não se vai apurar nada, que ninguém é responsável por nada, que nem assassinando um homem em directo nas televisões um ministro, sobretudo sendo socialista, acabaria demitido em menos de uma semana.

Dirão-me-ão as boas almas que será demasiado cedo para que se fale nas presidenciais de 2026. Não é. Se não é cedo para os interessados na eleição (uma saudação especial ao professor Santos Silva), também não é cedo para começarmos a falar de presidenciais. Tal como não é cedo para falar nas próximas eleições legislativas. Tanto o Governo como o Presidente têm pela frente uma série de anos não de mandato, no sentido em que ele exige o seu exercício, o cumprimento de metas, de objectivos, de resultados, mas de agonia institucionalizada. Costa e Marcelo, o senhor Feliz e o senhor Contente do pantanal lusitano, não merecem hoje oposição aos seus actos, às suas palavras ou às suas decisões: é o país que merece (que precisa!) uma alternativa. No Governo, naturalmente, mas também na Presidência.

Por uma vez, será tempo de começarmos a discutir que tipo de Presidente queremos, em vez de nos debruçarmos sobre que tipo de candidatos podem aparecer. É tempo, pois, de exigir um Presidente que não seja «de todos os portugueses», mas um Presidente que seja mesmo «da República»: que se preocupe mais com a autoridade do que com o poder e que a exerça sem calculismos; que seja capaz de, através da sua intervenção política, cuidar dos que mais precisam, mas, acima de tudo, de representar os sectores mais dinâmicos da sociedade, aqueles que estão mais perto do que queremos ser; que compreenda que «contas certas» não são um programa político, mas um mero exercício de responsabilidade que custou a entrar nas mentes pouco esclarecidas das nossas, vá, elites; que tenha, ele próprio, um programa político não necessariamente de natureza executiva, mas ideológica, filosófica, intelectual, que aponte caminhos, que denuncie erros, que não tema agir em conformidade com o seu programa; que fomente a cidadania autónoma, a construção de uma sociedade livre; que traga eixos políticos contra a estagnação, a corrupção e a mediocridade; que vigie o Governo, seja ele qual for; que proteja de facto os direitos, liberdades e garantias constitucionais; que promova o debate constitucional acerca das funções do Estado; que gere debate profícuo e que demonstre resultados, em lugar de representar um tipo de paternalismo iníquo de que o país não precisa se quer ter um futuro que lhe dê dignidade.

Exijamos um Presidente da República. Já é tempo de termos um.