O episódio é conhecido, mas vale a pena recapitular. Há duas semanas, na rubrica da SIC Notícias “O Tabu de Francisco Louçã”, o ex-líder do Bloco de Esquerda apresentou a sub-rubrica “Momento Zen” desta forma: “Uma coisa que eu tinha muita curiosidade de saber era se alguns sectores da direita acreditam mesmo nas suas lendas mais sanguinolentas. Uma delas é que os comunistas comem criancinhas. Na Assembleia Municipal de Lisboa, não há muito tempo atrás, uma deputada explicou que isso era rigorosamente verdade. Tinha as provas que os comunistas comem crianças e não são poucas. Vamos ouvir essa exibição de saber histórico e de frenesim político.”
Admito que fiquei em pulgas. Adoro teóricos das conspirações. Se há pessoas que acreditam que os comunistas comem crianças, quero saber quem são. Se dizem que têm provas, desejo ver. Pus em pausa e fui à cozinha buscar pipocas. Depois, pensei que talvez não fosse boa ideia estar a comer enquanto via supostas provas de canibalismo infantil. E voltei entusiasmado para a sala. Devo dizer que fiquei desiludido. O que Louçã tinha para mostrar eram excertos de uma intervenção de Aline Beuvink na Assembleia Municipal de Lisboa, em 2019, em que a deputada falava sobre a Grande Fome de 1932/33 na Ucrânia e de como a tragédia redundou em casos de canibalismo, muitas vezes de famílias que comiam os filhos, sendo essa a origem do mito de que os comunistas comem criancinhas.
Ou seja, não houve as tais pessoas de direita que acreditam que os comunistas comem criancinhas e que garantem ter provas disso. Eu, à espera de um maluquinho a dizer: “Sim, os comunistas almoçam criancinhas. Tanto é, que tenho aqui uma foto de meia dose de criança à Gomes de Sá servida no Avante!”, e afinal foi só alguém a relatar factos históricos incontroversos. Ali, a única pessoa que afirmou ter provas de uma coisa que não era verdade, foi Louçã.
Não é novidade, mas desta vez estranhei o desleixo. Geralmente, as aldrabices de Francisco Louçã dão mais trabalho a desmascarar. Esta peta durou 15 segundos até se desmentir a si própria. Que amadorismo seria este? Onde é que Louçã pretendia chegar com isto?
Entretanto, foram aparecendo vários artigos em resposta a Francisco Louçã, incluindo da própria Aline Beuvink. Artigos a acusá-lo de desvalorizar as vítimas do Holodomor, apresentando factos sobre a responsabilidade da URSS na calamidade, dados estatísticas e relatos pessoais aterradores, tudo apoiado em vasta bibliografia. De repente, o tema estava em todo o lado. E foi aí que percebi: era esse o objectivo de Louçã. Não era negar ou aligeirar os crimes soviéticos. Era, pelo contrário, trazê-los para a ordem do dia. A macacada do canibalismo era só o engodo.
Para que não restassem dúvidas, na semana seguinte, Louçã voltou à carga: “Tudo o que se disse sobre a Ucrânia peca por defeito. Porque a repressão e a mortandade ocorreu na Ucrânia, como ocorreu noutras Repúblicas Soviéticas, como ocorreu no conjunto do país. Houve pelo menos dois milhões de mortos – alguns historiadores calculam que até dez milhões de mortos – nos campos de concentração do Gulag. A repressão do estalinismo foi uma barbaridade do século XX. Eu até penso, como é bem público, que não pode haver nenhuma esquerda, ou nenhuma democracia com futuro, que não seja anti-estalinista.”
Pumba! Lance de génio. Enquanto todos achavam que estavam indignados com Louçã, Louçã desviou-se e a indignação ficou toda para os estalinistas. Numa altura em que o PCP é o menino querido da imprensa, com o seu apoio responsável ao Governo e com o recente centenário e a memória da luta anti-fascista, Louçã aponta o foco para a ignomínia causada pela URSS, que os comunistas portugueses veneram e insistem em justificar. “Ai, é? O PCP é muito lindo, não é? Então tomem lá o Holodomor! Tomem lá o Gulag! Tomem lá a repressão estalinista! E agora, quem é lindo, quem é?”
Porque Louçã é trotskista. E trotskistas não apreciam estalinistas. Se há uma morte que levam mesmo a mal a Estaline, com sinceridade, é a de Trotsky. Como o leninismo, o estalinismo ou o maoismo, o trotskismo é uma mutação do comunismo. Da mesma maneira que a Covid-19 tem variantes, o comunismo também tem estirpes diferentes. Umas matam mais que outras, mas no fim vai dar tudo à cova. Obviamente, há diferenças ideológicas relevantes. Onde um estalinista defende a tortura, a morte e a fome, um trotskista propõe a fome, a tortura e a morte. São divergências profundas que impedem a conciliação.
Apesar disso, um trotskista a apontar o dedo a um estalinista é como um furúnculo a acusar um quisto sebáceo. Ou como o ébola a avisar: “Cautela com a peste bubónica!” No fundo, isto é como o Croquete vir dizer mal da maquilhagem do Batatinha. Neste caso, o nome dos palhaços seria Falta Croquete e Também Não Há Batatinha.
Comparado com Estaline, Trotsky era o ambicioso. Estaline estava satisfeito com a situação na Rússia, mas Trotsky queria pegar no bonito trabalho que estavam a fazer e internacionalizá-lo. Se Estaline foi a fome, Trotsky foi a vontade de comer. Eram farinha do mesmo saco. Para ser mais preciso, eram ar do mesmo saco onde, há muito tempo, chegara a haver farinha.
Leon Trotsky foi um homem fascinante, mas em Portugal fala-se pouco dele. Devia-se falar mais. Podia-se aproveitar o facto de termos um seu admirador todas as semanas na televisão. Francisco Louçã tem cara de quem não parte um prato – e tem também cara de quem, se mandasse, deixaria muita gente sem comer qualquer prato – mas é inegável que se trata de um homem corajoso. É preciso coragem para se identificar publicamente com um torcionário. Mais: para liderar um partido que defende as ideias que levaram o torcionário a mandar matar. Podiam fazer-lhe perguntas sobre isso: “Obrigado, Francisco Louçã. Ficámos a conhecer as suas opiniões sobre a crise no CDS e sobre a injecção de capital no Novo Banco. O próximo tema é o Terror Vermelho. Fale-nos um bocadinho sobre o papel de Trotsky na perseguição e morte de opositores políticos, por favor.”
Tenho sempre curiosidade em ouvir discípulos de carrascos falarem sobre os seus ídolos. Os fãs apaixonados de Fidel Castro, Mussolini ou Pol Pot intrigam-me. São o equivalente político às mulheres que escrevem cartas de amor a Charles Manson ou Josef Fritzl. Chama-se hibristofilia e, segundo a Wikipédia, é “uma parafilia em que a atracção e excitação sexual e a obtenção do orgasmo dependem de se estar com um parceiro que cometeu um crime”. Confere. Quem não gostava de ouvir um hibristófilo a explicar a sua atracção por um criminoso? Sucede que, vai-se a ver e “O Tabu de Francisco Louçã” é, precisamente, falar de Trotsky. Conversa sobre todos os assuntos, menos esse. Uma pena. No fim de contas, o canibalismo que fica desta história é o de Louçã a comer-nos por parvos.