A propósito, ou despropósito, do lançamento da obra colectiva “Identidade e Família”, patrocinada pelo Movimento Acção Ética, muito se tem dito e escrito.
Na realidade, trata-se de uma publicação plural e muito diversificada quanto aos seus textos e autores, de que sou, certamente, a única excepção à regra da excelência. Um dos colaboradores é do PS e foi ministro do Governo do Eng.º António Guterres, e não consta nenhum colaborador do Chega, nem de qualquer partido da extrema-direita.
Não obstante alguma comunicação social ter dito que se tratava de uma conspiração da direita mais conservadora e radical, em defesa da família tradicional e contra as mulheres, as minorias, a liberdade, etc., a diversidade dos autores – entre os quais há, por sinal, 6 mulheres – e a pluralidade dos respectivos pontos de vista, não só desmente essa crítica, como prova o contrário. Mas há, decerto, um denominador comum: a família. Não a família tradicional, nem conservadora, mas, apenas e só, a família ou, se se quiser, a família natural, formada pela união estável de um homem, uma mulher e seus filhos. Outras uniões, mesmo que equiparadas legalmente ao matrimónio, o não são em sentido natural, não por razões ideológicas, políticas, religiosas ou culturais, mas porque só a união de uma mulher com um homem é fecunda. Assim se explica que, mais de 90% das uniões, em todo o mundo, sejam entre pessoas de diferente sexo.
Escusado será dizer que todo este ruído foi excelente para a divulgação deste livro, que já esgotou. Muitas das reações foram mais sentimentais do que racionais e, por isso, de escasso interesse, mas há, pelo menos, uma honrosa excepção: o excelente artigo de Maria Afonso Peixoto, “Em defesa do livro ‘Identidade e Família’”, na Página Um, de 12-4-2024. Isto sim, é jornalismo!
Embora tenham abundado os comentários a este best-seller, poucos jornalistas e comentadores se deram ao trabalho de o ler, ou de perceber sequer o seu significativo subtítulo, em jeito dialéctico: “Entre a consistência da tradição e as exigências da modernidade”. O propósito a que esta obra responde é claro: reflectir sobre a instituição familiar a partir da sua história – a “consistência da tradição” – e à luz da actualidade, ou seja, das “exigências da modernidade”.
E a mal-dita família tradicional?! É um modelo datado que, como é óbvio, não é susceptível de repetição: o tempo, como dizia a canção, não volta para trás. Felizmente, um tal anacronismo não é possível, nem desejável, mas também não se pode dizer que tudo o que é moderno é positivo: pense-se, por exemplo, no enorme incremento dos fracassos matrimoniais e no silencioso genocídio das crianças não-nascidas.
Embora a família natural seja um modelo universal e intemporal, o mesmo não se pode dizer da família tradicional. Com efeito, a nossa família tradicional não se identifica com a africana, a chinesa ou a árabe, e cada uma delas evoluiu ao longo do tempo.
A família greco-romana não só conhecia o divórcio, como também a pedofilia e a escravatura que, obviamente, repugnam à sensibilidade moderna. A família medieval assentava no matrimónio uno e indissolúvel e na geração; mas, por regra, os casamentos eram celebrados em função de interesses alheios à vontade dos contraentes, o que explica um seu nefasto efeito: a emergência dos filhos extramatrimoniais que, em geral, eram abandonados nas Rodas dos expostos, de triste memória. Nas classes superiores, as filhas solteiras e os filhos segundos eram obrigados a professar nas ordens religiosas, às vezes sem qualquer indício de vocação. Mais tarde, com a revolução industrial, surgem os proletários, ou seja, as famílias cuja principal fonte de rendimento é a prole, escandalosamente explorada como mão-de-obra barata.
Nem sequer a família tradicional de há cem anos era absolutamente recomendável. Recorde-se, por exemplo, a hipocrisia de uma sociedade que tolerava a infidelidade masculina. As mulheres estavam, em geral, impedidas de votar. Igualmente se lhes proibia, com raras excepções, o acesso a muitas profissões.
Também no que respeita à educação, a família dita tradicional tinha muito que se lhe diga. Nas casas de mais recursos económicos, os pais desentendiam-se dessa missão, fazendo-se substituir por preceptores e amas. Aos homens não se permitiam certos gestos de afecto – como beijos, abraços, ou pegar num bebé ao colo – o que era mais um estereótipo absurdo, felizmente já ultrapassado. Também era aberrante o preconceito de que as tarefas domésticas deviam ser da exclusiva responsabilidade feminina, como se a colaboração masculina maculasse a integridade da sua condição. Não era menos disparatado o costume de vestir as crianças mais pequenas, raparigas e rapazes, com roupas femininas, desrespeitando a sua identidade sexual, que deve ser reconhecida e afirmada desde o nascimento.
Por tudo isto e o que fica por dizer, família tradicional não, obrigado! Com certeza que tinha também muitas virtudes, mas não se podem perder as conquistas entretanto alcançadas. É essencial o reconhecimento da igualdade, em direitos e obrigações, dos cônjuges. É imperiosa a criminalização da violência doméstica. É fundamental a liberdade de todos, sem excepção, em relação à sua vida afectiva, ao casamento e à constituição da família. É necessário que as mães e os pais, cada qual a seu modo, se dediquem à educação da prole e colaborem na lida da casa, partilhando as tarefas domésticas. As mulheres e os homens devem ter acesso, em igualdade de condições, a todas as profissões civis e aos cargos de chefia nas empresas privadas e nos organismos públicos, sem qualquer discriminação.
Note-se que o não digo por uma questão de conveniência momentânea, por causa da polémica gerada por ocasião da apresentação deste livro: o meu texto nessa obra era já – espantem-se! – descaradamente revolucionário! Com efeito, citando G. K. Chesterton, escrevi: “Com a ruiva cabeleira de uma garota da rua, lançarei fogo a toda a civilização moderna. Como a rapariga deve ter o cabelo comprido, é preciso que o tenha limpo; como deve ter o cabelo limpo, não deve ter a casa suja; como o seu lar não deve ser sujo, há que manter a sua mãe livre e disponível; como a mãe deve ser livre, é preciso que tenha um senhorio não usurário; como não devem existir senhorios usurários, deduz-se a necessidade de redistribuir a propriedade: tem de haver uma revolução!” (Identidade e Família, pág. 142).
E esta?! Pois é, ao contrário do que dizia o Dr. Oliveira Salazar e, pelos vistos, ainda pensam os cronistas que criticam o que nem sequer leram, nem tudo o que parece, é …