Dos Filipes de Espanha, já se sabe, não há em Portugal grande memória. A não ser do segundo deles e primeiro nosso que ao que parece por questão de honra e por gostar da terra da mãe dele respeitou o acordado e teve a óptima ideia de não pôr em prática a possibilidade de transferir a capital do seu Império de Madrid para Lisboa.
Talvez a História fosse outra se assim tivesse sido e para além da nossa armada que foi ao fundo nas várias batalhas daqueles que se diziam invencíveis,outras coisas, ainda mais valiosas, se tivessem perdido. A recuperação da nossa soberania que é como quem diz da nossa independência, por exemplo. E com ela iriam os territórios ultramarinos e todo um mundo, principalmente no que hoje conhecemos como América Latina.
E assim, depois da Restauração e de muitos anos de luta voltaram eles para casa e nós tratámos de demonstrar o que valíamos novamente como nação independente. Ao continentalismo castelhano continuámos a responder durante décadas com o atlantismo português, a nossa maior mais valia e uma das razões da nossa existência.
Acontece também que, entretanto, a ele lhe tinham sucedido outros dois, menos capazes e, não só mas também por isso, o que era o Império onde o sol nunca se punha foi lentamente chegando ao fim. Séculos se seguiram, histórias tantas vezes interligadas e outras de costas voltadas com franceses pelo meio, guerras entre absolutistas e liberais e veio o século XX.
Em Portugal cai primeiro a Monarquia apressada pelo assassinato de um Rei Chefe de Estado que era exemplo seguindo-se o Estado Novo de Salazar; Espanha começa por se tornar numa República que antecede a Guerra Civil e o Franquismo. Entre 1974 e 75 os dois regimes da península terminam. Um mais preparado para o que aí podia vir, apesar do duro processo de transição, o outro, aparentemente mais pacífico, mas saído de uma guerra que significou o abandono dos territórios e das populações portuguesas em África e Goa, o que sabemos. E o atlantismo, que agora finalmente alguns tentam redescobrir é esquecido nos caminhos da Europa.
Dos últimos 50 anos portugueses muito se falou este ano. Do bom, do mau e do mais ou menos, sendo que é nestes dois adjectivos que cabe aquilo a que nestas linhas se quer chegar. À chefia de Estado, republicana em Portugal, monárquica aqui ao lado,e à liderança.
Quanto a este Filipe de Espanha de agora, quando chegou ao trono (ou ao poder, mas já lá vamos) muitas dúvidas se colocaram. Mais do que preparado para o cargo, casara com alguém improvável e sucedia ao pai, Juan Carlos I, uma das peças chave da tal transição para a democracia, caído em desgraças várias. A somar a isso a eterna questão da Catalunha, que já em 1640 dava dores de cabeça a Madrid; e um país onde florescem os inevitáveis radicalismos de esquerda e de direita, e que põem em causa a coesão, ou a união, se quiserem, do país como um todo. Seria ele capaz?
Passaram 10 anos. O Rei, que em cada discurso reforça o seu dever de fazer cumprir a Constituição amadureceu. O sistema oligárquico e partidário degradou-se ano após ano e ainda mais do que cá. Pedem-lhe mais acção, alguns. Mas este Rei, ao contrário do outro com o mesmo nome, reina mas não governa. O seu poder, o imaterial, vai muito para além disso. Nestas semanas em que a tragédia lhes veio de estrondo – mostrando o pior dos interesses políticos e económicos e cujos efeitos levaram de enxurrada tantas centenas de vidas e de sonhos – a figura de Filipe VI (e da Rainha, diga-se) aparece acima de tudo isso. Enfrenta a justíssima ira e o desespero das populações, ouve, tenta unir, não foge, fica, abraça, acolhe. Assume responsabilidades até as que não são as dele, dá esperança a um povo cansado de não ser ouvido, tenta o fim de demasiadas divisões. Mostrou que a liderança também se faz assim. E que a união de Espanha passa com toda a certeza por ali. Se o conseguirá, veremos. Talvez nem outros dez anos sejam precisos para o perceber. Mas nestes dias lá está ele, de camuflado, presente, a desempenhar o papel que só ele pode efectivamente fazer. O de um verdadeiro Rei, muito para além do jogo partidário. O tal que une e constrói e não o que conspira e depois dele não fica nada. Que memória ficará dele em Espanha e no Mundo um dia as próximas gerações irão saber; a nós portugueses que vivemos neste tempo tão carente de liderança e que não temos nada disso fica para já o exemplo de alguém digno e que não tem medo. Não que se pretenda o regresso dos Filipes, mas que se veja como uma Chefia de um Estado assim pode, de facto, fazer a diferença e defender aquilo para que existe: um país, os seus interesses e acima de tudo as suas populações.