Sábado passado, aeroporto de Lisboa, pouco depois das duas da tarde. Passo com uma mala e um trolley pela zona nada a declarar. Um agente da Autoridade Tributária para uma senhora ao meu lado, não facilitando que as outras (muitas) pessoas atrás prossigam. A meio da conversa, e porque é normal os passageiros irem saindo, começo calmamente a andar. O agente estende o braço, impetuoso, para me fazer parar.

Eu paro e quando finalmente termina a conversa com a outra senhora pergunta-me de onde venho. Respondo. Pergunta-me o que tenho nas malas. Digo que fui numa viagem organizada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros de Taiwan e tenho sobretudo presentes que as várias organizações me ofereceram. Pergunta-me que tipo de presentes. Informo que chás, um colar, por aí. E compras? Qual o valor? Não disse valor nenhum – estava há mais de vinte e quatro horas entre aeroportos e aviões, mal dormida, com jet lag, incapaz de fazer contas de cabeça – mas expliquei que comprei vários presentes para os meus filhos, souvenirs, que não tinha comprado nada de eletrónica, e que se quisesse ver o que eu tinha comprado eu não tinha problemas.

O agente estava a fazer o seu trabalho e respondi com boa vontade e verdade. Ele notou isso mesmo e mandou-me ir embora. Eu, já a andar, comentei ‘Vê? Tanta gente que devia inspecionar e chateou-me a mim’. Não fui agressiva (tenho um metro e sessenta, visto o 36, estava de ténis sem salto, não tenho volume para ameaçar ninguém), não fui malcriada, nem insultuosa, nem sequer o tom de voz foi desagradável. Foi mais uma tentativa de piada que uma crítica, porque estava a poucos metros dos meus filhos, que não via há uma semana, muito cansada e tive de perder aqueles minutos da minha vida inutilmente.

Ah, mas é da ordem natural das coisas os portugueses oferecerem muito respeitinho aos senhores inspetores das finanças – se não estes vingam-se. São pessoas muito importantes e é bom que lhes façamos muitas reverências porque têm a nossa vida (financeira) nas mãos. É dirigir-lhes muitos salamaleques, apresentarmo-nos adequadamente subservientes e trémulos. Não são permitidas piadas nem alusões que impliquem que a sua atuação não foi a mais bestial do mundo.

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Estava eu já a ir, o senhor agente resolveu amuar e disse-me ‘Ai é mal educada? Se é mal educada vai abrir as malas.’ Assim mesmo. Porque o inspetor achou que eu fui mal educada (não fui), e apesar de estar convencido que eu não trazia os tesouros de Chiang Kai-shek na bagagem – tinha-me dito para seguir; e se tivesse algo a esconder manter-me-ia calada –, resolveu gastar tempo e recursos pagos pelos contribuintes a inspecionar uma pessoa porque não foi simpática, em vez de a procurar passageiros suspeitos. Bom uso do dinheiro dos contribuintes. E a falta de vergonha e o sentimento de impunidade são tão grandes que assumiu, às escâncaras, que me iria revistar a bagagem não por desconfiar mas para punir a minha alegada falta de educação.

Aí, claro, irritei-me e disse-lhe o que pensava do abuso de poder: mexerem nos meus bens pessoais e íntimos porque o ego sensível do inspetor da AT necessitava de me dar uma ensaboadela por não ser reverente nem ter respeitinho. Enquanto eu dizia o que pensava, o inspetor da AT mexeu nos meus bens pessoais sem usar luvas. Remexeu na minha mochila (uma coisa cor de rosa histérica com muito bom ar que ninguém confunde com bagagem, onde eu tinha medicamentos, o meu caderno com as notas da viagem, maquilhagem, o porta-moedas) sem me pedir autorização.

Não me foi aplicada nenhuma taxa alfandegária. O agente não conseguiu inventar infrações. Mas a conversa foi surreal e desagradável. No fim pedi para que se identificasse – uma obrigação que devia ser imediatamente cumprida sem protesto –, o que deu aso a mais palavras ásperas, obrigou a que também me identificasse (sem outra razão que eu ter pedido a identificação), anotou porventura o número de contribuinte para talvez sugerir aos colegas uma inspeção futura (vou ficar à espera).

Conto isto por duas razões. A primeira é que considero a AT – em resultado da atuação dos vários governos de todos os partidos – uma organização perigosa, com tiques totalitários, que nenhum governo contém na voracidade de arrecadar – a bem ou à força – mais impostos. A AT levanta um número absurdo de ações contra os contribuintes. Quando estes têm capacidade de litigância com frequência ganham nos tribunais (os que não podem pagar a advogados lá ficam com a AT à perna). A AT recorre de sentenças para além de toda a razoabilidade. Qualquer indício é distorcido de forma a exigirem mais impostos, perseguem efetivamente empresas (sobretudo as pequenas) e as famílias, atropelam direitos e privacidade, se preciso for dão informações erradas para levar os contribuintes a pagarem o que não devem ou que duvidam que devem. Não há qualquer responsabilização dos agentes da AT que abusam dos recursos judiciais portugueses, entopem tribunais e levam ao pagamento de custas pelos contribuintes.

Este é um estado de coisas urgente de mudar. Os atos no aeroporto são só um micro sintoma da enfermidade geral da AT. Mas não mudam. Pelo contrário, a autoritária AT cada vez tem mais poder para cobrar dívidas não fiscais.

A segunda é o saudável relacionamento dos cidadãos com o Estado. A prepotência institucionalizada devia ter terminado, mas os velhos hábitos demoram a morrer. Subsistem porque não há nenhum mecanismo que os impeça. Não é informado que são servidores dos cidadãos, não seus carrascos. A cortesia é desconhecida. Fazer queixa destes pequenos abusos é inútil, porque nada é de facto averiguado nem ninguém penalizado.

O Estado parece aquelas velhas e grandes e mal geridas empresas monopolistas onde o cliente é sempre vilipendiado. Boa ideia seria implementar um sistema de reclamações que tivesse efetivamente consequências. Um ombudsman na linha do que é proposto aqui para os funcionários da UE, uma espécie de mini Provedor de Justiça, poderia ser solução. E, entretanto, ir ensinando nas escolas que o estado existe para servir os cidadãos e não os cidadãos para servirem o estado.