Quando começaram as notícias sobre o incêndio da Mouraria, tive a vaga impressão de estar a ver um remake de um desastre anterior. Quanto mais crescia a onda de indignação com as condições desumanas de alojamento dos imigrantes que sobreviviam no número 55 da Rua do Terreirinho, mais me parecia que algo de semelhante acontecera há pouco tempo nesta mesma cidade.

Sim a 20 de Dezembro de 2020 um prédio tinha desabado na Estrela depois de uma explosão. Em Junho desse mesmo ano, um incêndio num prédio causara um morto na Ajuda. Em Agosto, novos incêndios, desta vez em Campo de Ourique e em São Bento.   Mas foi na Rua Morais Soares que em Julho de 2021  aconteceu algo que parece uma cópia do agora acontecido na Rua do Terreirinho: Incêndio numa habitação na rua Morais Soares faz dois mortos. Edifício estava “sobrelotado”. O fogo fez também 10 feridos, 4 deles em estado grave. Os seis feridos ligeiros foram encaminhados para os hospitais de São José e de Santa Maria, em Lisboa.

Um dos mortos — o homem que num dos videos feitos pelos moradores da zona se vê a saltar da janela do quarto andar — era senegalês. O ferido em estado muito grave (o que terá sido feito dele?) era peruano. Tudo parece demasiado igual com o acontecido agora, em 2023, no número 55 da Rua do Terreirinho:Dois mortos e 14 feridos em incêndio em prédio na Mouraria. São as mesmas casas sobrelotadas. Os mesmos arrendamentos que passam clandestinamente a subarrendamentos pagos a preço de ouro por  imigrantes. A mesma gente a fugir desesperadamente do labirinto de fogo, tapumes e fumo. A mesma freguesia de Arroios.

O que difere então? A forma como olhamos para o que aconteceu: o incêndio de 2021 foi um facto a lamentar. O incêndio de 2023 uma tragédia que há que denunciar. Em 2021, pouco ou nada se soube sobre a identidade das vítimas. Segundo as notícias “A fonte não precisou o número total de residentes do prédio“, entendendo-se aqui por fonte a autarquia. Pela Junta de Freguesia de Arroios falou a então presidente, Margarida Martins, que disse “ter constatado, assim como alguns técnicos da autarquia, “vestígios de um monte de madeira ressequida junto à caixa de escadas”. “Já iniciámos o processo de responsabilização do dono ou donos deste prédio“, explicou a então autarca. Uma nota do Presidente da República a desejar a rápida recuperação dos feridos encerrou o assunto. Não mais se soube dos feridos graves e nem sequer em que resultou a investigação da PJ sobre a origem do incêndio.  Não se questionou a política de habitação, não se responsabilizou a autarquia, nem se questionou Margarida Martins sobre as consequências da forma leviana para não dizer pior como a Junta de Freguesia de Arroios, a que ela então presidia, passava atestados de residência: “Chegámos aos 10.000 Atestados” de residência congratulava-se a Junta em 2019!

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Porquê esta diferença? As respostas são óbvias. A primeira é que em 2023 a imigração gera muito mais atenção. A segunda é que agora a autarquia não é do PS. Uma regra não escrita mas ferreamente interiorizada determina que perante o imprevisto e os desastres os dirigentes de esquerda partilham da dor dos seus concidadãos. Já aos dirigentes de direita pedem-se responsabilidades.

Não duvido que caso em 2021 o presidente da autarquia não fosse de esquerda,  o video do imigrante senegalês a saltar  da janela do quarto andar lhe teria amargurado os restantes dias da vida política. (Tal como não tenho qualquer dúvida que se em 2017 o primeiro-ministro não fosse do PS e, não menos importante, não contasse com o apoio do PCP e do BE, não só o governo teria caído após os incêndios desse Verão em Pedrogão e sobretudo em Leiria como a carreira política de António Costa teria sofrido um interregno.)

Dir-se-á que esta dicotomia prejudica os políticos de direita. Na verdade não só não creio que tenham de sair necessariamente prejudicados desta dicotomia como podem virá-la a seu favor. Esse momento de viragem pode acontecer nos momentos de crise: Passos Coelho fê-lo na crise do irrevogável. Carlos Moedas que andava entretido na triste figura de “menino Carlos” pode estar a fazê-lo agora, primeiro  assumindo as responsabilidades na negociação dos custos das Jornadas Mundiais da Juventude, depois com a forma como reagiu ao incêndio na Mouraria e à questão da imigração.

Mas, muito mais importante, esta dicotomia prejudica sobretudo o país. Tal como Lisboa ardia sem se ver, os professores esqueciam-se de olhar para o que estava a acontecer às suas carreiras e os utentes entretinham-se com as loas à paternidade do SNS. Na verdade, enquanto a esquerda mantiver os níveis de condescendência que tem garantido a quem exerce o poder em seu nome haverá sempre um fogo que arderá sem ser visto.

Ps. Que Inês Franco Alexandre tenha proposto ocupar a ponte 25 de Abril parece-me o menor dos problemas que a sua escolha comporta. O problema é que ao ouvi-la confirmo algo de que já suspeitava: em Portugal, cada nova fornada de socialistas  faz-nos ter saudades da anterior. É a chamada degradação das espécies em política.