“A carne de vaca será substituída “por outros nutrientes que irão ser estudados, mas que será também uma forma de diminuir aquela que é a fonte de maior produção de CO2 que existe ao nível da produção de carne animal”.”

“”A regra agora é que todos os jantares oficiais têm peixe, porque temos o melhor peixe do mundo”.

Nestes dois casos, o da Universidade de Coimbra, em cima, e o do Governo, em baixo, parece que há quem acredite que a carne (só a de vaca, no primeiro caso, toda a carne, no segundo) deve ser banida da nossa alimentação.

Só que, mesmo tratando-se do reitor da Universidade de Coimbra e do primeiro-ministro, estas duas decisões estão mais ligadas ao pensamento mágico do que ao pensamento científico.

Se o Senhor Reitor tivesse dito que iria avaliar o impacto das opções alimentares nas cantinas e iria alterá-las no sentido de obter este ou aquele objectivo, eu seria com certeza um entusiástico apoiante da medida.

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Se mesmo antes de avaliar dissesse que lhe parecia possível reduzir o consumo de carne e de lacticínios, de alimentos processados, de alimentos congelados e aumentar o peso dos alimentos frescos provenientes de cadeias curtas de comercialização e curtas distâncias, eu seria um entusiástico apoiante da medida.

Se, mais que isso, o Senhor Reitor se tivesse referido ao contributo que queria dar à gestão dos fogos e da paisagem em Portugal, contratualizando compras de produtos provenientes de produtores cuja actividade contribui para a gestão de combustíveis, eu acharia fantástico.

Se o Senhor Reitor dissesse que queria contribuir para aumentar a viabilidade do Rebanho da Serra do Rabadão, da Quinta Lógica, da Terra Chã, da Terra Maronesa (sim, são vacas, senhor, mas são vacas em produção extensiva, que pastam parcialmente em pastagens pobres, que gerem combustíveis nas serras, contribuem para a conservação do lobo e outros elementos da diversidade biológica), eu então entraria em delírio com o Senhor Reitor.

É verdade que a produção intensiva de carne é grandemente insustentável e há muitas vantagens em diminuirmos o seu consumo.

Mas também é verdade que das coisas mais impressionantes em toda esta discussão sobre o consumo de carne e da sua produção é a extensão da ignorância básica sobre os processos naturais, e sobre a forma como milhares de anos de experiência em agricultura e pecuária os manipulam e usam para satisfação das necessidades das comunidades humanas.

Na militância vegetariana e vegan campeiam mitos sobre a gestão do mundo rural, acreditando-se que os animais não fazem falta nenhuma nos sistemas de produção que nos alimentam.

Com frequência defende-se que a reposição da fertilidade dos solos e a recuperação de solos degradados (com o consequente aumento do stock de carbono) se pode fazer prescindindo dos animais, apontando-se a compostagem como alternativa.

A verdadeira alternativa, no entanto, foi a descoberta da síntese da amónia industrial, isto é, a possibilidade de obter fertilidade numa fábrica a partir da atmosfera e energia (compostos azotados, o fósforo fia mais fino), isto é, a produção agrícola que prescinde da integração com a produção animal apenas sobrevive a partir de adubos de síntese, o que convenhamos que usando critérios de sustentabilidade, não se pode dizer que seja uma alternativa evidente.

A ideia de que existem lixos orgânicos suficientes para repor a fertilidade dos solos produtivos (a agricultura é, por definição, exportadora de nutrientes, para já não falar da perda de matéria orgânica e estrutura dos solos provocada pelas lavouras), esquece que a acumulação de lixos orgânicos em grandes cidades resulta de processos produtivos noutro lado qualquer.

Para que exista acumulação de lixos orgânicos é preciso que se tenham produzido as matérias-primas dos processos produtivos que levam o produto ao cliente final, cujos desperdícios dão origem à tal acumulação de matéria orgânica nas grandes cidades. E nesse fluxo há enormes ineficiências.

Depois de produzido os lixos seria preciso compostá-los e voltar a devolvê-los aos solos onde fazem falta, processo em que volta a haver ineficiências enormes.

Claro que se pode dizer que ao nível da exploração se pode fazer isto com cadeias curtas. Mas isso significa ter enormes extensões não produtivas, com a única função de produzir material para compostagem. Se o produtor não for burro, vai produzir nos melhores solos e deixa para esta função as terras marginais, que produzem uma vegetação com enormes teores de lenhina, dificultando os processos de compostagem.

O que os nossos ancestrais perceberam rapidamente, porque a vida deles dependia de facto do que conseguiam produzir em cada ano, é que este processo pode ser enormemente encurtado usando as características dos animais, que se deslocam sozinhos (primeiro ponto importante), que fazem uma selecção da vegetação muitíssimo eficaz (deixam lá a lenhina e escolhem as partes tenras da vegetação) e que ainda aumentam a velocidade de degradação dos tecidos vegetais com os seus sistemas digestivos, devolvendo-nos estrumes e chorumes quase prontos a ser usados, em muito menos tempo e com muito menos trabalho que o necessário para obter os mesmos nutrientes por via da compostagem.

E depois, de tempos a tempos, usavam o fogo para degradar rapidamente a lenhina, disponibilizar nutrientes rapidamente às plantas e renovar a pastagem, recomeçando o ciclo.

E de caminho os animais produzem carne, leite, queijo, pele, cornos, lã, etc..

Cavalgar a ideia infantil de que se pode prescindir da produção animal para obter os alimentos e fibras de precisamos não é levar a sério a necessidade de adoptarmos medidas de adaptação às alterações climáticas, é mesmo ignorância militante que nos impede de reconhecer a importância da função coproiética dos rebanhos.

Acresce que este governo é o mesmo que lançou – e bem – um programa que paga a pastores para que os seus rebanhos controlem matos para resolver o problema dos fogos. Mas ao mesmo tempo o senhor primeiro-ministro defende um boicote ao consumo de carne, seja ela qual for, em vez de usar os mercados públicos para dar viabilidade aos modelos de produção extensivos.

Há mais de dez anos que este é um dos meus temas constantes de trabalho, e há mais de dez anos que trabalho com o Chef António Alexandre a relação entre cozinha e gestão do território, e em grande parte desse tempo a ideia foi reforçada com Luís Jordão.

Substituir carne por peixe (ou por vegetais), sem saber de que sistemas de produção estamos a falar é completamente vazio do ponto de vista da sustentabilidade ambiental.

Se o governo, as universidades, os hospitais, os centros de dia, os quarteis, as escolas, as câmaras quiserem verdadeiramente usar os mercados públicos a favor de políticas de adaptação climática, eu só poderei estar de acordo.

Mas isso faz-se servindo papas de milho com abóbora, feijão, couves e desfiado de novilho assado, por exemplo, porque a primeira opção das refeições que pretendam contribuir para a adaptação climática é mesmo a frugalidade e a diversidade, não é decidindo sobre produtos, sem consideração pelo processos de produção.

Adoptar uma cozinha frugal, assente num território que é preciso viabilizar, reabilitando pratos tradicionais ou criando outros contemporâneos, sem carne ou com muito pouca carne proveniente de sistemas de produção extensivos, faria muito mais pela adaptação climática que simplesmente banir o consumo de carne — muito menos substituindo carne por peixe de que não sabemos a proveniência, pescado com que métodos, conservado de que forma e, sobretudo, em que quantidades vai ser servido.

Se se quiser usar um desfiado de cabrito ou borrego, como fez António Alexandre numa das oficinas em que tentámos dar a conhecer outras maneiras de comer cabrito ou anho, em menos quantidade e aproveitando restos, enriquecendo a base de vegetais do prato, estar-se-á a contribuir para paisagens mais bem geridas, podendo-se facilmente compensar as diferenças de preço da carne produzida em sistemas extensivos com a redução das quantidades consumidas.

Assim, caro Senhor Reitor, tenho a agradecer-lhe chamar a atenção para a importância dos mercados públicos para as políticas ambientais e de gestão do território, mas tenho pena, francamente pena, que a vontade de surfar a onda de tanta gente mal informada o tenha levado a pôr a Universidade de Coimbra na posição de um agente pouco sofisticado e ignorante, ignorando, por exemplo, o bom exemplo do Instituto Politécnico de Bragança, que nas suas cantinas apenas serve carne de vaca mirandesa com Denominação de Origem Protegida.

A minha sugestão é simples: prepare uma decisão com cabeça tronco e membros, avalie o que realmente quer fazer, saiba que alternativas vai querer usar, e ponha o assunto em discussão pública.

Do ponto de vista da sensibilização o processo seria muito mais produtivo e a Universidade cumpriria a sua função de dignificar a ciência acima do senso comum.

Ganhávamos todos.