No mais célebre dos quatro retratos de rosto que Walker Evans lhe fez, Allie Mae Burroughs tem os olhos postos na câmara e morde os lábios finos e lívidos. Sublinhada por um cenho franzido, a sua mirada parece agregar, em equilíbrio dinâmico, desafio, ressentimento e resignação. Atrás de si, a textura da madeira por tratar contrasta com o padrão pontilhado do vestido e acentua-lhe o rosto precocemente envelhecido. Allie Mae tinha 27 anos. Aparenta ter o dobro.
O retrato de Allie Mae é um dos ícones fotográficos da Grande Depressão. Nele, como em Mãe Migrante (1936) de Dorothea Lange, o estudo individual, uma vez esmiuçado, expõe os sedimentos de um trauma comunitário. No entanto, despojado de sinais de miséria e apelos ao sentimentalismo, o de Evans encontra-se, na minha opinião, num patamar distinto. Como nas figuras de Leonardo, o fotógrafo norte-americano conseguiu condensar uma amplitude psicológica que não cessa de nos inquietar. A grande arte é aquela que no destaque do particular tenta expressar o absoluto, e a fotografia de Allie Mae, infundida de uma ambiguidade subtil, habita esse território partilhado e rigorosamente encerrado nos domínios da criação artística e da religião. Mas voltemos ao encontro de Walker Evans com a família Burroughs.
Corria o Verão de 1936 quando o fotógrafo e o escritor James Agee viajaram ao Alabama, a expensas da revista Fortune, para documentar a condição dos agricultores da região. Em Hale County, conheceram os Burroughs, uma família de meeiros em situação de pobreza. Agee tirou apontamentos. Evans fotografou: Allie Mae, o marido Floyd, os quatro filhos, e a casa onde viviam – que, como o terreno que lavravam e os instrumentos que usavam, estava na posse de um terratenente.
O artigo não chegou a ser publicado. Evans usaria um dos retratos da sra. Burroughs no álbum American Photographs (1938), mas a série de Hale County, acompanhada do texto de Agee, só viria a ser apresentada em 1941, no livro a quatro mãos e dois ofícios Let Us Now Praise Famous Men. Por falar nisso, American Photographs é um prodígio da linguagem fotográfica. Numa época em que somos arrastados para o analfabetismo visual por um fluxo incessante de imagens, «lê-lo» é o melhor exercício para recuperar e desenvolver a capacidade de decifrar fotografias.
Aquando da visita ao Alabama, Walker Evans ainda trabalhava para a Resettlement Administration, mais tarde Farm Security Administration (FSA), a agência criada no âmbito do New Deal para combater a penúria que afligia as comunidades de agricultores do país. A instituição tinha como incumbência a aquisição e distribuição de terrenos de cultivo, bem como o controlo da produção. Paralelamente aos encargos colectivistas, ainda financiava um programa de fotografia, dando emprego a fotógrafos e escritores cuja missão era percorrer os Estados Unidos e expor a precariedade dos trabalhadores rurais. Porém, não iam para retratar a Grande Depressão como entendessem: era-lhes dito que a mostrassem como eles, os burocratas da agência, no aconchego dos seus escritórios em Washington, a imaginavam. A FSA tinha uma linha doutrinária e os artistas, com mais ou menos latitude, deviam exercê-la.
Se o trabalho convinha a Walker Evans – cumprindo os requisitos mínimos, podia fazer o que queria e receber uma avença –, a sua personalidade, consolidada por ideias próprias sobre a fotografia, pô-lo desde cedo em rota de colisão com o responsável pelo programa, Roy Striker, e foi com naturalidade que abandonou o grupo em 1937. Julgo ser pertinente referir que, quando foi a Cuba para uma reportagem sobre as condições dos trabalhadores na ditadura de Gerardo Machado, Evans passou mais tempo a beber com Ernest Hemingway do que a fotografar. Apesar de não ser desprovido de empatia com os desfavorecidos, a chamada justiça social não era a sua prioridade. Na fotografia, o que o motivava era a forma, não o conteúdo.
Além do mais, Evans, ao que parece, não estava muito interessado em manter relações com as pessoas que fotografava. Entrevistados algumas décadas após a visita de Evans e Agee, os filhos de Floyd e Allie Mae queixaram-se da indiferença do fotógrafo. A família não voltou a ser contactada pelo autor e nem um exemplar do livro lhes foi enviado. Era como se houvesse uma distância intransponível entre a classe média-alta da costa leste que Evans frequentava e a lavoura do sul norte-americano.
Oriundo de uma família burguesa, Evans teve uma educação privilegiada e com 23 anos foi estudar para Paris, onde conheceu alguns dos mais importantes artistas e escritores da época. Eram públicos os seus gostos sofisticados e vida social exuberante, ainda que aquém dos padrões que ambicionava. Quando Isabelle Storey, a sua segunda mulher, lhe perguntou se queria ter filhos, Evans respondeu-lhe: «Um filho meu teria que ser educado em Groton e Harvard e não temos dinheiro para isso.»
É bem de ver que a biografia e obra «do maior artista americano do século XX» (Jorge Calado) são um excelente pretexto para uma reflexão acerca da arte e da propaganda e da zona difusa onde os dois conceitos se sobrepõem. Mas o que me traz aqui hoje é outra imagem do portefólio de Hale County: uma foto da cozinha dos Burroughs (Kitchen Wall, 1936), simples, minimalista, e sem embargo plena de significados furtivos.
Para realizá-la, o fotógrafo apontou a objectiva em enquadramento formalista aos barrotes toscos e desgastados pelos elementos de uma das paredes da cozinha. Ortogonalmente aos barrotes, os Burroughs haviam fixado uma trave, com utensílios esparsamente pendurados, e um sustentáculo para os garfos e as facas. Por baixo, notam-se bem os vestígios de outras posições do apoio: à medida que as crianças cresciam, os pais subiam-no, apartando os acessórios da curiosidade infantil. Num gesto tão singelo concentra-se o mais universal dos imperativos biológicos: os pais protegem os filhos.
Não obstante esta obviedade, a protecção parental, atributo definido pela evolução e indispensável à sobrevivência da espécie, poderá estar em crise, ou pelo menos numa estranha deriva. Há qualquer coisa no espírito da época que nos incita a questionar se essa ainda é uma característica predominante, pelo menos na sua versão unilateral, desinteressada. Os artistas, sempre atentos aos sinais do tempo, já começaram a reflectir sobre o tema. No filme Força Maior (2014), o sueco Ruben Östlund explora uma situação-limite vivida numa estância de esqui por uma família tradicional (seja lá o que isso for ao dia de hoje). O cenário, palco principal do hedonismo e da ideologia da juventude em vigor, não será fortuito.
O episódio que dá azo ao enredo ocorre num restaurante aberto às montanhas, no momento em que uma avalancha controlada provoca o pânico entre os clientes. No alvoroço, Tomas, o pai, pega no telemóvel e foge, deixando os filhos e a mulher, Ebba, à sua sorte. A emergência revela-se exagerada, mas o incidente perturba irremediavelmente a harmonia doméstica. Para salvar a face (tema central do cinema de Östlund), Tomas tenta, num primeiro momento, impingir uma versão distorcida do ocorrido. A dada altura reconhece a sua fraqueza e irrompe num pranto que provoca em Ebba uma comiseração conformada e no espectador um desconforto tremendo.
Na última cena, é Ebba quem entra em pânico, em virtude da condução supostamente temerária do motorista. Desesperada, desce da camioneta, deixando o marido e os filhos para trás, atónitos, mas o seu medo contagia os outros passageiros, que acabam também por sair. Tomas convence-se então de que não é o cobarde da família e o filme termina com ele a descer a estrada, confiante, satisfeito, e aliviado de uma responsabilidade para a qual não está preparado. A igualdade é restabelecida: uma igualdade nivelada na «fragilidade» feminina.
O optimismo irónico que encerra o filme é o que se costuma designar por falso final feliz. A contemporaneidade pugna pela paridade sôfrega entre os sexos, mas em circunstâncias de crise, nomeadamente nas que acarretam risco físico, espera-se, dos homens que sejam destemidos e que estejam dispostos a proteger a família, custe o que custar. Como dizia Wilson Simonal, «todo o homem que vacila a mulher bota pra trás». A biologia é implacável e ganha quase sempre com goleada às «ideologias de género».
Voltando ao assunto: à tese da degradação do instinto protector dos pais, os mais atentos poderão contrapor a vigilância sem quartel que as novas gerações dispensam aos seus filhos – quase sempre únicos. Observa-se, sem dúvida, um excesso de preocupação: as crianças não devem ser contrariadas, não podem ter más notas, não querem ser superadas pelos colegas, não precisam de professores autoritários e exigentes. Esconder-se-á, na superprotecção, um instinto de preservação da auto-estima? Afinal, ninguém gosta de reconhecer que os seus genes e pedagogia só conseguem criar um pequeno monstro ou um rematado idiota. Há ainda o aspecto físico da nova protecção parental, que tem vindo banir a rua da vida das crianças, e com ela os joelhos esfolados e as cabeças partidas. Também se percebe: ir às urgências ou fazer uma máquina de roupa é uma maçada. Em síntese, o menino-boneco do século XXI quer-se psicológica e fisicamente invulnerado, a bem da imagem e da serenidade dos pais.
Por paradoxal que pareça, este cuidado de caricatura só vem reforçar a sensação de que vivemos um momento de inflexão moral, e de que em breve serão as crianças a assumir a obrigação de proteger os pais e os avós, ou pelo menos de apaziguar-lhes as neuroses. Com tantas notícias sobre crianças fechadas dias a fio nos seus quartos, avós que não se aproximam dos netos, e mães que levam os filhos na bagageira ao centro de análises mais próximo, é difícil contradizer o vaticínio dos pessimistas. Aliás, se as crianças já estão entregues a ensaios sociais, como as aulas de cidadania (e o ensino público em geral) ou o mais recente projecto de reformulação do homem, que envolve um rigoroso patrulhamento dos brinquedos e das palavras e da cor do vestuário, o que as salvaguarda de um dia, para tranquilidade de todos, serem sujeitas a outro tipo de testes? A intervenções clínicas de efeitos desconhecidos e das quais nada beneficiam, por exemplo, mas que desempenhariam a função de sossegar a família e a comunidade, numa variante particularmente perversa do dilema do comboio. Um pai nunca sujeitaria um filho a semelhante atrocidade? Quem sabe! A infâmia é o limite quando postos a fazer experiências mentais. Até há quem diga que tais experiências já são reais, mas deve ser mentira. A ser verdade, o processo de desumanização em curso, promovido pela geração humanitarista, estaria irremediavelmente concluído.
Diante deste cenário, a dúvida emerge com naturalidade: se fossem nossos contemporâneos, os Burroughs preocupar-se-iam com o lugar do suporte para os talheres? Afinal, as facas deviam ter o fio rombo e a liga dos garfos não seria, com certeza, muito resistente, ao passo que os pregos necessários para as operações de carpintaria, bem visto o contexto, podiam estar oxidados e ferrugentos. No fim de contas, o tétano é uma infecção grave que pode levar à morte. Não é a ferrugem que provoca o tétano? Ora, que importam os detalhes na era da ciência dogmática…
Para terminar, gostava de evocar a pergunta do médico no primeiro acto de O Tio Vânia (1898), de Anton Chekhov: «Aqueles que viverem daqui por cem ou duzentos anos e para quem abrimos hoje o caminho, irão lembrar-se de nós com palavras gentis?» Não sei, ao certo, com que palavras são hoje recordados os contemporâneos de Chekhov, mas estou convicto de que são mais gentis do que aquelas com as quais seremos descritos pelos que nos sucederem (na condição de não serem totalmente corrompidos pelo mundo que deixamos). Estou até convencido de que este início da década de 20, em particular, será lembrado como um dos períodos mais ridículos e obscenos da história recente. Se Walker Evans fosse vivo, dificilmente conseguiria imprimir o leque de estados anímicos que observamos no retrato de Allie Mae. A vergonha impor-se-ia com naturalidade.