A Grécia vai ou não sair do euro? A menos de duas semanas do fim do programa de assistência, é difícil dizer.
Difícil porque, como notou João Marques de Almeida, a forma como os dirigentes gregos conduziram a sua primeira semana de contactos na Europa caracterizou-se por uma sucessão de erros. O El Pais ia mais longe e considerava mesmo que, depois da ronda de estreia, “o novo governo grego não tem na Europa um só aliado digno desse nome”.
Difícil porque, na apresentação do seu programa de Governo, Tsipras optou por um tom de desafio e não deu quaisquer sinais de poder caminhar em direcção às posições europeias ou de se conformar com as regras em vigor. Optou antes por anunciar medidas boas para “likes” no Facebook, como vender metade da frota automóvel ao serviço do Governo, mas absolutamente negligenciáveis em termos de contas públicas.
A situação degradou-se de tal forma que Wolfgang Münchau, um dos mais europeístas colunistas do europeísta Financial Times, titulava a sua última crónica de forma muito significativa: “Tudo o que é preciso para um Grexit são mais algumas semanas desastrosas como esta”.
Talvez seja pois altura de discutir a possibilidade de a Grécia sair do euro. Ou melhor: talvez seja mesmo altura de discutir a possibilidade de “desmanchar” gradualmente uma moeda única que não parece ter forma de algum dia funcionar decentemente. Há tabus que devem ser enfrentados antes que seja demasiado tarde, e este é um deles.
Há um consenso generalizado de que a moeda única foi mal concebida e mal concretizada. Lembro-me de, no tempo da euforia colectiva, ter ouvido, numa conferência a que assisti em Istambul, um eurocéptico inglês dizer que o euro nunca poderia funcionar bem pois não possuía mecanismos que lhe permitissem compensar “choques assimétricos”, isto é, existirem regiões em crise e regiões em crescimento. Foi a primeira vez que um argumento introduziu um elemento de dúvida no meu entusiasmo pró-euro. Quase 20 anos depois está claro que aquele ponto tinha toda a razão de ser: quem tiver dúvidas que leia o texto de Vítor Bento “Eurocrise: uma outra perspectiva” (não concordo com todo o seu argumento, mas considero-o inteligente, fundamentado e relevante).
Sabemos hoje como correram estes anos de euro. Sabemos como, antes da crise, o euro funcionou como uma droga alucinogénea para países como Portugal ou como a Grécia. E também sabemos como, quando a crise estalou, o euro, as regras do euro, e tudo o mais que bem conhecemos, não levou apenas a uma austeridade imposta de fora, levou também a divisões na Europa como há muito não conhecíamos e à emergência de populismos que nunca tinham conseguido pôr a cabeça de fora em sete décadas de pós-guerra.
O ponto em que hoje estamos é fácil de descrever: só é possível salvar o euro no longo prazo federalizando a Europa, criando mais políticas e mais regras comuns. Tirando poder aos países e dando-o a Bruxelas. O Tratado Orçamental é o primeiro passo nesse sentido, e é bom que os seus muitos detractores tenham consciência disso. Nunca haverá “solidariedade” europeia sem um colete-de-forças que garanta aos países do Norte – os “excedentários”, como os define Vítor Bento – que o seu dinheiro não é mal utilizado nos países do Sul – os “deficitários”.
O que se passou com a criação do euro foi que se juntaram países com culturas económicas muito diferentes. O mesmo Vítor Bento explicou isso muito bem no seu último livro, Euro forte, Euro fraco. O seu argumento, solidamente assente em números, é que, até à criação do euro, as economias europeias podiam ser divididas em dois grandes grupos: as que não tinham inflação e, por isso, tinham moedas fortes, e as que viviam bem com mais inflação mas eram obrigadas a desvalorizar constantemente as suas moedas. A Alemanha é o exemplo paradigmático dos países do primeiro grupo, Portugal foi, como os mais velhos se recordarão do tempo da inflação a mais de 20%, um exemplo clássico dos países do segundo grupo. Esta divisão corresponde a preferências sociais que o autor considerou “incompatíveis”.
O euro teve a ambição de fundir num só bloco estas duas tradições. Fê-lo adoptando o molde alemão, por duas razões: primeiro, porque só assim a Alemanha aceitaria abandonar o seu bem-amado marco; depois, porque muitos, nos países de moeda fraca, acreditaram ser possível transformá-los e moldá-los à imagem da Alemanha. Ouvi defender esse argumento voluntarista em muitas conferências e sei que foi uma das motivações dos nossos negociadores nessa altura, numa época de enorme optimismo sobre o futuro da economia portuguesa. Sabemos o que se passou desde então.
A situação descrita por Vítor Bento nesse livro e no artigo de domingo só pode ser corrigida tornando a união monetária naquilo que ela nunca foi, e não foi por vontade expressa dos seus membros: uma união de transferências. Todas as sugestões que dá – um maior orçamento (redistributivo) federal, a capacidade de endividamento da própria União, a federalização dos subsídios de desemprego ou um programa de despesa pública financiado pelos Excedentários – são medidas que representariam transferências volumosas entre os vários países da União. Politicamente não me parece possível. Nem hoje, nem daqui a 20 anos. Mais: não me parece desejável. Pior: até hoje nenhum partido populista conseguiu ter sucesso na Alemanha, o país que seria sempre o maior “pagador” numa tal união de transferências, mas não creio que isso continuasse assim se se criasse nesse país algo de semelhante ao clima que existe no Norte de Itália relativamente ao Mezzogiorno. Insistir nesse caminho e pensar que ele depende apenas da “visão” dos líderes políticos é brincar com o fogo num depósito de combustíveis.
E assim voltamos novamente à Grécia e a um problema que já aqui abordámos: o da sua real soberania. Ao escolherem o Siriza, os gregos optaram por um programa de governo cuja concretização não depende apenas deles. Não depende sequer sobretudo deles: é que não se devem fazer promessas com o dinheiro dos outros, como lembraram alguns líderes europeus a Tsipras e a Varoufakis durante o seu périplo da semana passada. Sendo que o maior problema é que a Europa se confronta agora com o choque entre a “escolha democrática” dos gregos e as escolhas, igualmente democráticas, dos eleitorados dos restantes países. Quando Tsipras diz, no Parlamento, que “não negociará o mandato eleitoral”, está a acelerar contra um muro, pois é precisamente isso que tem de fazer.
Mas há mais: não são apenas as escolhas democráticas dos gregos não se coadunam com as regras da moeda única, os seus hábitos políticos também não. E ainda menos a sua cultura económica e empresarial, todas as suas ancestrais e arreigadas preferências sociais. Sendo assim, o que está o país a fazer no Euro? É por tudo isso que tendo a concordar com Alan Greenspan, o antigo presidente do banco central norte-americano, quando ele defende que a saída da Grécia do euro é apenas “uma questão de tempo” e até seria “melhor para todos”.
E Potugal? Iríamos nós atrás, como diz Varoufakis? Neste momento isso depende sobretudo de nós, mas viveremos sempre sob essa ameaça. Há coisas que nos estão na massa do sangue e nunca seremos como os alemães ou como os finlandeses, por muito que alguns sonhem com isso.
Por isso, mais tarde ou mais cedo, temos de ir à tal discussão sobre como se desmancha esse enorme erro que foi o euro – e não cair no erro ainda maior de federalizar ainda mais a Europa contra a vontade dos seus povos. O ideal, digo eu, seria a Alemanha e alguns países satélites saírem eles primeiro da moeda única, uma ideia que já há quem defenda em Berlim. Por mim vou acender uma velinha a ver se isso acontece.
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