Passados 1002 dias desde o início da guerra, já não estamos no mesmo lugar. Já não somos, como revelava um Eurobarómetro especial realizado após os primeiros meses de invasão, os segundos na Europa a sentirem-se economicamente mais afectados pelo conflito, apesar de sermos os mais distantes no mapa e só batidos pela Bulgária, muitos milhares de quilómetros mais próxima e alguns euros mais pobre. Esta embaraçosa confissão de vulnerabilidade, no mesmo estudo em que uns míseros 49% dos nossos diziam ter como prioritária a defesa da democracia e da liberdade, mesmo que à custa do sacrifício do nosso nível de vida, contra 59% da média europeia, foi, entretanto, aplacada. Passou o susto inicial, desceram os preços de energia e dos alimentos; os governos por cá, primeiro o PS com umas esmolas para alguns, depois o PSD-CDS com mimos para todos, lá foram fazendo baixar a maré do medo e deixando ver o que também sempre lá esteve desde o início, como devia estar: a empatia para com um povo em sofrimento, uma nação invadida, o direito internacional, que subscrevemos, defendemos e nos defende, ferido e ameaçado por quem não está nem aí para a nossa vida, quanto mais para o “nível” dela.

Sim. Passados estes quase três anos de guerra, um milhão de mortos e incontáveis prejuízos económicos, ambientais, infraestruturais, institucionais e psicológicos que demorarão décadas a sarar, quando puderem começar a sarar e se algum dia o fizerem, o impacto de que mais nos podemos queixar, nesta longínqua ponta da Europa, é mesmo o da proliferação do idiota. Não é de sirenes, nem fugas, nem 1001 noites sem dormir, nem bombas, nem tanques, nem raptos, nem violações, nem mortos, nem mutilados; é só de idiotas. Somos uns privilegiados. A única queixa que temos direito a apresentar é a de, para a idiotia, não haver abrigos subterrâneos.

Como em quase tudo na vida, no caso da Guerra na Ucrânia os idiotas vêm em diferentes tipos e tamanhos. Três, para ser mais preciso.

O primeiro é o whataboutista. Fala-se da Ucrânia e ele: “Ah, é? Então, e Gaza? Não dizes nada de Gaza? Ai, as crianças da Ucrânia que foram bombardeadas, coitadinhas… E as de Gaza?” Como se uma pessoa tivesse, literalmente, de escolher a sua guerra. Só tivéssemos direito a uma. De qual é que gostas mais? Da Guerra da Ucrânia ou da da Palestina? Já agora, esqueçamos por um momento que a Ucrânia não invadiu a Rússia num belo dia, matou mil e tal civis na rua e ainda sequestrou mais uns quantos para, depois, achar que podia controlar a resposta do adversário. Será que não podemos falar duma guerra e depois doutra? Sim, a resposta de Israel tem sido completamente desproporcional e desumana, criticada por muitos amigos e parceiros, pelos EUA, pelo Papa e até pelos próprios israelitas que, felizmente, têm liberdade de expressão. Mas fará alguma espécie de sentido tentar provocar esta espécie de aporia, de impasse, no discurso, em que eu não te deixo falar da tua guerra porque acho que se devia falar primeiro da minha? Os teus mortos, feridos, estropiados, vítimas de violação, sequestrados, refugiados, valem menos do que os meus? Anular uma desgraça com a outra? Relativizar tudo enquanto ambas somam e seguem a desgraçar milhões de vidas?

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Segundo tipo: “Mas também temos de ouvir o outro lado”. Este é o idiota que peca, verdadeiramente, pela boa intenção. Está apenas a tentar ser justo, tolerante, liberal, imparcial, razoável, manter a cabeça fria. Mas exagerou no processo; caiu para fora da realidade. Não temos de ouvir o outro lado porque os lados, nestas questões, não são equivalentes. Não é um jogo de ténis nem de futebol. Não é um debate entre dois candidatos à Presidência da Junta. Numa agressão, num assalto, numa violação, num assassinato, não vamos “ouvir o outro lado”. Diga lá, senhor violador, o que é que tem a dizer: “Ah, a Ucrânia estava a pedi-las? Então, está ok.” Se ninguém vê, é uma palavra contra a outra; se está toda a gente a ver e há antecedentes, ouvimos o outro lado, sim: em tribunal.

Terceiro e último tipo de idiota: o que vai atrás do vencedor. Notou-se no início da “operação militar especial”, quando se achou que ia ser um ataque rápido e eficaz, depois andou caladinho quando a coisa se complicou e, agora, que o país mais pequeno vai mostrando, forçosamente, mais sinais de desgaste, e que a mudança política nos EUA lhe ameaça pôr em causa o apoio. É o que se ri quando Zelensky diz que a Ucrânia é um país independente. O cínico que troça do recuo ucraniano, quando forçado por um opositor que não se importa de já ter mandado para a morte 700 mil dos seus, só para satisfazer a vontade de uma oligarquia dominante. Que não tem de responder a nenhum eleitorado pelos seus crimes. É o que se mantém neste disfarce de equidistância cínica, de quem não está a favor dum lado nem do outro, como se fosse possível ou ainda menos meritório manter-se imparcial, neutral, equidistante, numa situação de guerra, em especial numa provocada por uma invasão de um estado soberano a outro, muito mais pequeno e desarmado.

No fundo, este é o tipo mais perigoso de idiota. É o idiota sofisticado, requintado, que quer ter a certeza que está do lado do vencedor, quando acabar a guerra. É o mais difícil de topar e desconstruir e, por isso, vai fazendo, discretamente, o seu caminho e disseminando a sua posição pelas conversas de café, redes sociais e televisões. Houve muitos no tempo do nazismo – em Itália, em Espanha, em França, no Reino Unido, até em Portugal – só desapareceram e Hitler se tornou uma coisa muito condenável quando a Alemanha capitulou.

É o risco que corremos, 1002 dias de guerra depois. O do ataque nuclear de idiotas. O do cogumelo da idiotia rebentar e contaminar todos os que não souberem ou conseguirem fugir. Incomparável com o daqueles que são, verdadeiramente, vítimas da guerra; ainda assim, de estar atento. Muito atento.