Primeiro facto: Portugal é o país europeu com maior percentagem de população vacinada contra a Covid-19 (89%). Isto não é um detalhe — é o ponto que faz toda a diferença entre a situação actual e o que se passou em Portugal há um ano, com a subida dos contágios até à explosão do Natal e ao confinamento decretado em Janeiro. A vacinação cria imunidade de grupo e protege efectivamente a população, nomeadamente contra as complicações mais severas da doença. A nível internacional, o cruzamento dos indicadores de vacinação e hospitalizações ou mortes por Covid-19 revela de forma categórica como os países com mais população vacinada estão significativamente mais preparados para lidar com o inevitável contágio do vírus — inevitável, sim, porque ele não será erradicado, passando apenas a endémico, como tantos outros vírus com os quais contactamos.
Segundo facto: a contenção da pandemia deve imenso à ciência, mas fez-se essencialmente de escolhas políticas. Os especialistas em saúde pública e os virologistas foram (são) imprescindíveis perante um vírus até há pouco desconhecido. Mas quem tomou decisões foram sempre os políticos, ponderando factores de saúde pública, mas também geográficos, sociais e económicos. Isso explica que, com a mesma informação científica, diferentes países tenham seguido estratégias e medidas de contenção distintas — ou seja, adoptando medidas menos ou mais restritivas. Ora, relembre-se: Portugal está entre os países onde mais restrições foram implementadas — por exemplo, as escolas básicas portuguesas foram das que mais tempo estiverem de porta fechada.
Terceiro facto: Portugal tem eleições legislativas anunciadas para o final de Janeiro e a actualidade até lá será marcada pela evolução da pandemia Covid-19 (na Europa e em Portugal) e pela habitual pressão hospitalar nesta época mais fria do ano. Ou seja, independentemente dos conteúdos das campanhas eleitorais, a pandemia terá uma enorme influência na percepção dos eleitores sobre as suas opções de voto. Não é surpresa: a investigação académica tem precisamente constatado que a gestão da pandemia tem beneficiado os incumbentes, seja aumentando as suas taxas de aprovação, seja reduzindo a margem de manobra dos partidos na oposição. Traduzindo: uma situação de crise favorece fortemente as ambições eleitorais do PS e de António Costa, enquanto figuras da autoridade do Estado, atribuindo-lhes o protagonismo e incentivando-os a decidir pela implementação de restrições — para prevenir ou para os ilibar perante (improváveis) agravamentos da situação pandémica.
Nenhum dos factos acima constitui novidade, mas no seu conjunto traçam um retrato que se tornou imperativo desenhar, face ao reinstalado ambiente de histeria à volta da Covid-19. Dois meses após a celebração eufórica da libertação nacional das restrições Covid-19, o país olha agora com renovado pânico para os boletins diários da DGS, acompanhando a subida dos números de casos de infecções. Seria de esperar que as instituições políticas nacionais serenassem os ânimos, lembrassem como estamos mais protegidos e como temos de vencer o medo de um vírus que veio para ficar. Pelo contrário, as figuras do Estado estão a ampliar receios e alarmismos. Exemplo: o Presidente da República já considera “evidente” a obrigatoriedade de uso de máscara na rua, antecipando-se a especialistas e ao governo na definição de medidas. Já agora, seria bom que se explicasse: o que tem o uso de máscara na rua de evidente num país em que praticamente todos estão vacinados?
Mais do que apontar as habituais incongruências de Marcelo, convém deixar um alerta atempado ao governo e ao núcleo duro de António Costa: resfriem-se as tentações de impor medidas de contenção da pandemia que, desnecessárias num contexto de população vacinada, servirão sobretudo para projectar o PS e os membros do governo na véspera de eleições legislativas. Nas eleições autárquicas, Costa e os candidatos socialistas não tiveram qualquer pudor em exibir o PRR como bandeira eleitoral. Agora, espera-se que não façam o mesmo com a Covid-19. Não somente não faz sentido regressar às restrições Covid-19 do passado recente, como, se tal acontecesse, poder-se-ia interpretar essa opção política como cedência ao medo ou como estratégia ao serviço de interesses eleitorais. Fosse qual fosse o motivo, o preço social a pagar seria sempre inaceitavelmente elevado.