De acordo com um relatório desta semana da Ordem dos Médicos (OM) e do Instituto Superior Técnico (IST), o número diário de infecções por Covid-19 chegaria aos 50 mil, entre 20 (hoje) e 24 de Janeiro — e, de facto, chegou ontem. Mas houve quem discordasse da previsão e considerasse que o pico desta vaga já havia passado, pelo que o número de infecções tenderia a estabilizar ou a diminuir nesse período — é o caso de Carlos Antunes, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e que integra a equipa que acompanha a evolução da Covid-19 em Portugal. Primeira curiosidade: a poucos dias do período de referência (20 a 24 de Janeiro), os especialistas não conseguiram chegar a um consenso sobre como evoluiriam as infecções por Covid-19 em Portugal.

A segunda curiosidade é mais interessante: bastam poucos dias para que os especialistas corrijam as suas próprias previsões. No dia 3 de Janeiro, um relatório da OM/IST alertava que, até dia 24 de Janeiro, o país poderia atingir as 100 mil infecções diárias — ou seja, duas semanas após esta previsão, a OM/IST passou a apontar para apenas metade deste valor. Quanto a Carlos Antunes, as versões oscilam. A 4 de Janeiro, o especialista calculou que haveria cerca de 20 mil casos na última semana de Janeiro, especulando que o ritmo de contágios em Janeiro seria inferior ao do período do Natal (que rondou os 30 mil casos diários) — entretanto, a realidade não foi bem assim. A 13 de Janeiro, o especialista alterou a estimativa para 32 a 34 mil casos diários, e reconheceu que a realidade da evolução da pandemia havia sido muito mais favorável do que os cenários oficiais mais optimistas traçados uma semana antes, na reunião do Infarmed (dia 5 de Janeiro).

Usei exemplos recentes de posições conflituantes, mas poderia ter recorrido a outros especialistas e a outras estimativas destes últimos dois anos para ilustrar o ponto: sucessivamente, o debate público e as medidas de contenção da pandemia têm sido guiados por previsões que a realidade não confirma. Portugal não é excepção — esta dificuldade acontece em vários países. Mas é uma pena que, em Portugal, não haja um escrutínio sistematizado destas estimativas, que nos ajude a perceber porque falham tanto as previsões sobre a evolução da Covid-19 e, já agora, quem são os institutos, laboratórios ou especialistas que mais têm acertado nas suas projecções. No Reino Unido, por exemplo, observa-se um escrutínio constante sobre as previsões dos grupos de peritos e cientistas. Uma análise muito interessante foi recentemente publicada na The Spectator, que comparou as estimativas do SAGE (Scientific Advisory Group for Emergencies), que aconselha o governo, com o que efectivamente aconteceu em número de infecções, de hospitalizações e de óbitos. Conclusão: as previsões do SAGE ficaram muito longe do que veio a suceder.

Não estou a apontar o dedo acusatório aos especialistas, que certamente fazem o melhor que conseguem para antecipar a evolução de uma doença nova e em grande medida desconhecida. Estou a salientar uma ausência que me parece gritante: falta debate e o saudável escrutínio das previsões dos especialistas sobre a evolução da Covid-19. E, já agora, estou também a apontar outro ponto: há em todo este processo uma manifesta arrogância e falta de bom-senso das autoridades públicas. Arrogância, porque após dois anos de pandemia ainda tantos acreditam que conseguem prever o imprevisível, usando como bússola estimativas flutuantes e contraditórias, assentes em pressupostos muito discutíveis. Falta de bom-senso, porque a relevância atribuída a tais previsões levou a uma desproporcionalidade nas restrições impostas sobre a população, agravando desnecessariamente as suas consequências sociais, económicas, educativas e sanitárias nestes últimos dois anos.

Permitam-me uma analogia. Estamos em período de campanha eleitoral e, semanalmente, publicam-se sondagens de várias empresas para prever o sentido de voto dos portugueses. A nossa experiência com resultados eleitorais surpreendentes face às sondagens é já suficientemente vasta para que todos olhemos para as sondagens com moderada desconfiança. Sabemos todos que existem limitações metodológicas nos inquéritos de opinião. Aliás, conhecendo as características das sondagens (a dimensão da amostra, o método da amostragem e a sua representatividade social e geográfica, o procedimento para redistribuição de indecisos), até já aprendemos a distinguir as sondagens mais fiáveis de outras menos rigorosas. E, logo na noite eleitoral, o escrutínio às sondagens é implacável: todos queremos saber quais foram as empresas ou institutos de sondagem mais certeiros na projecção dos resultados eleitorais e todos queremos identificar quem errou por mais (e o porquê desses erros). Tudo isto é normal. Anormal é que o mesmo não se aplique às previsões dos especialistas sobre a Covid-19, que são publicadas e referenciadas de forma acrítica. Todos ganharíamos com um pouco mais de escrutínio.

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