Li no outro dia que Putin, em conversa telefónica com Macron, quatro dias antes da invasão da Ucrânia, teria dito ao presidente francês que estava no ginásio e que, em vez de perder tempo com a conversa, preferia ir jogar hóquei sobre o gelo. A coisa lembrou-me algo que tinha lido no dia anterior. Pouco antes da invasão da Polónia, Hitler declarara ao embaixador inglês, Sir Neville Henderson, que era, pela sua própria natureza, um artista e que, depois da questão da Polónia ficar resolvida, tencionava sair da cena política e dedicar-se à pintura.
Percebemos o mundo através da detecção de semelhanças e diferenças. Como Montaigne, entre outros, notou, há gente mais apta a notar as semelhanças e gente mais disposta a assinalar as diferenças. Mas, como é óbvio, trata-se de uma questão de grau. A detecção de umas implica forçosamente a detecção das outras. Entre dois rostos, por exemplo. Ou entre duas ideias. E por aí adiante. A compreensão e o sentimento de inteligibilidade são o resultado da conjunção das duas detecções. Mas é claro que as podemos isolar abstractamente.
Por estes dias, ando às voltas com um problema que tem a ver com a detecção das semelhanças. Ou, se se preferir, com a descoberta de analogias, no sentido corrente da palavra – relação de semelhança entre duas entidades distintas –, sem ser preciso ir aos vários sentidos mais técnicos do conceito. O nosso pensamento, como se sabe, serve-se abundantemente delas. Tanto o pensamento quotidiano como o pensamento científico, o pensamento estético ou o pensamento ético-político. A eficácia das analogias depende da natureza, da estrutura, dos objectos do pensamento, mas, em todo o caso, elas são fundamentais para o próprio acto de pensar.
As virtudes do pensamento analógico não nos devem fazer esquecer os seus riscos. Se podem contribuir para a nossa compreensão das coisas, podem-nos igualmente induzir em erro. E isso não apenas nos casos em que elas são tiradas pelos cabelos, mas mesmo quando possuem alguma verosimilhança. Uma má analogia (mesmo que verosímil) pode ser a melhor maneira de não perceber a natureza do objecto que nos prende a atenção. Conduz-nos a falsas equivalências e desvia-nos do caminho certo para o entender. Isto é particularmente notório no caso da política e da história, onde, de forma mais selvagem ou mais prevenida, a tendência para o estabelecimento de analogias é fortíssima.
Centremo-nos na história. Aristóteles (e, depois, Schopenhauer repetiu-o) dizia que a história é menos filosófica do que a poesia, já que, ao contrário desta, não lida com o universal, mas com o particular. Os indivíduos históricos e os acontecimentos históricos são singulares. Isso produz um efeito limitador sobre o alcance das analogias: elas devem ser temperadas pela consciência da irredutibilidade do singular. As semelhanças estruturais são, por conseguinte, precárias. Mas será que isso quer dizer que elas são ilegítimas e incapazes de nos ajudar a compreender a natureza dos objectos que nos interessam? Não parece que seja assim. Mais: seria contra-intuitivo pensá-lo quando o apelo das semelhanças é poderoso. Muitas vezes, o presente é iluminado pelo passado – e, do mesmo modo, o passado é iluminado pelo presente. O presente torna-se mais inteligível quando comparado com o passado e o passado adquire uma vida suplementar através da experiência do presente.
Tomemos um exemplo. As comparações de Putin com Hitler são hoje em dia frequentes, como a comparação das reacções das democracias ao primeiro e ao segundo. Confesso que, mesmo com a prudência toda, a memória de leituras passadas e os dias que passei em companhia de Appeasing Hitler. Chamberlain, Churchill and the Road to War, de Tim Bouverie, publicado em 2019, fizeram-me dar comigo a concordar com a opinião comum e a surpreender-me com o número de analogias dotadas de verosimilhança. As coisas não são, evidentemente as mesmas. Mas as semelhanças fazem-nos pensar que as situações presentes e passadas se iluminam reciprocamente e suscitam uma compreensão mais nítida dos acontecimentos.
É espantoso como analogias entre os nossos tempos e aqueles que antecederam o início da Segunda Guerra Mundial funcionam. Refiro-me a analogias de carácter e de procedimentos dos participantes. Do lado de Putin, como do lado de Hitler, a mentira permanente. Do lado das democracias, nesta nossa última década como naquele tempo, uma confiança sôfrega na possibilidade da paz. Chamberlain não era a excepção: era a regra. Uma confiança que parecia renovada, e mesmo fortalecida, a cada nova violência nazi. Hitler, fizesse o que fizesse, era, no mínimo, “sincero”, “um homem em quem se podia confiar”. Os “homens culpados” – Guilty Men foi o título de um livro publicado em 1940, sob o pseudónimo de “Catão”, por três jornalistas, um liberal, outro conservador e outro, Michael Foot, futuro líder dos trabalhistas – tentaram apaziguar Hitler até às últimas possibilidades, e muito para lá delas. Quaisquer que sejam as revisões que a história tenha vindo e continue a fazer (o próprio Churchill, aquando da sua morte, fez um seu belo elogio), é difícil não ver Chamberlain à luz daquilo que, na altura, escreveu Dorothy Parker: “o primeiro primeiro-ministro da história a rastejar a quatrocentos quilómetros por hora”.
Tal como hoje Putin faz com a NATO, Hitler acusava a Inglaterra, em pleno período de “apaziguamento”, e com Chamberlain a continuar a recusar um rearmamento substancial, de visar a “aniquilação” da Alemanha. E, como hoje para Putin, para Hitler era a Alemanha a ameaçada e agredida – pelos polacos, por exemplo, antepassados dos “neo-nazis ucranianos”. Não fazia senão tentar libertar os falantes de alemão, onde quer que se encontrassem – nos Sudetas, entre outros lugares –, ameaçados de exterminação pelos outros povos. Lembra-vos alguma coisa? E, tal como hoje em relação a Putin, os jornais eram muitas vezes acusados de serem injustos para com Hitler.
Ler sobre aqueles tempos é como ter uma espécie de déjà vu ao contrário, em que o passado ecoa o presente, sem ilusão ou alucinação nenhumas. Falta-nos, é claro, Churchill e o We shall never surrender a seguir à retirada de Dunquerque, mas o destino de um caso tão excepcionalmente excepcional de retórica política é o de todos os modelos exemplares: ser inimitável. Kant diz isso a propósito da originalidade exemplar do génio e a coisa vale indiscutivelmente para Churchill: não há imitação possível, aí onde a imitação seria o mais desejável. Temos, no entanto, depois de anos de silêncio cego, algumas palavras acertadas. E acções também, que é o mais importante. E Zelensky não precisa de lembrar Tucídides. Tem o seu génio próprio.
A legitimidade das analogias históricas é, sem dúvida, condicionada. Mas há talvez um critério que as legitima: o haver iluminação recíproca do presente e do passado. A analogia entre o jogador de hóquei sobre o gelo – e os seus espectadores entusiastas – e o pintor – e os seus admiradores incondicionais – é uma boa analogia. A mentira de uma identidade alternativa parece ser comum a certa espécie de criminosos. Apesar de tudo, Estaline também gostava de se apresentar como linguista.
PS. Marcelo Rebelo de Sousa declarou a Ângela Silva, do Expresso, que assume, em relação ao Governo, o papel de “grilo falante”. Quer dizer: adopta a posição da consciência que é a da personagem do desenho animado de Walt Disney. Eu lembro-me bem – até tinha um disco de 45 rotações – dos longos discursos (em português do Brasil) do grilo. Mas talvez fosse conveniente que Marcelo lesse o escrito original de Carlo Collodi, que serviu de inspiração ao filme. É que, se bem me lembro, o grilo, mal tenta reprovar o comportamento de Pinóquio, é logo esborrachado por ele contra uma parede – para apenas aparecer, uma segunda vez, miraculosamente, tentando falar de novo e conhecendo outra vez um fim parecido. Imagino que tal funesto destino – não ser esborrachado, mas calado – seja particularmente incómodo para Marcelo, mas o Pinóquio era assim. E, já agora, uma pergunta quase metafísica: quem é, neste desenho animado em que vive e nos quer fazer viver, o Gepeto?