A propaganda russa fala abundantemente de “salvamento” das crianças ucranianas para designar o rapto puro e duro de milhares dessas crianças pelo exército russo depois da invasão da Ucrânia. De todas as mentiras delirantes que saem da boca de Putin e dos seus, a ideia de “salvamento” das crianças é talvez a mais intrinsecamente repugnante, sabendo-se, ainda por cima, que o rapto visa, antes de mais, transformá-las em pequenos autómatos putinianos, endoutrinados pela sua ideologia do “mundo russo”. Depois do assassinato dos pais, vem a violação mental e moral dos filhos, se é que a violação não se manifesta também noutros termos – e manifesta-se, de certeza.

A impunidade da mentira, sobretudo da mentira mais infame, é algo que não deve deixar de nos surpreender. Porque a utilização das palavras num sentido que em nada corresponde à realidade é uma forma de mentira como outra qualquer. É a mentira daqueles que têm o poder de impor o significado das palavras a seu bel-prazer. Ninguém ousa contrariá-los. As palavras significam o que eu quero que elas signifiquem, dizia Humpty-Dumpty. A questão, acrescentava, é saber quem é o mestre, quem é que tem o poder de decidir. Não ficar, a cada nova mentira desta magnitude, sempre de novo surpreendido, é o último pecado em que devemos incorrer.

Soljenítsin, que era um verdadeiro patriota russo – e que acreditava que a Ucrânia e a Bielorrússia deviam permanecer ligadas à Rússia, mas que, escolhendo afastarem-se, deviam ser respeitadas nessa sua decisão –, achava que era injusto associar a Rússia ao comunismo, como se algo no seu país o conduzisse naturalmente a esse tipo monstruoso de sociedade. Provavelmente tinha razão. Mas, com toda a prudência que se deve ter nestas matérias, deve haver algo que inclina a sociedade russa a uma terrível habituação à mentira, à dissolução do laço que liga a palavra à verdade, à reverência pelos mestres do significado que lhe caem em cima. Algo me diz – e só tomei consciência do facto depois da invasão da Ucrânia – que o não ter havido, em toda a história desse enorme país, um só grande filósofo digno desse nome tem algo a ver com isso. A filosofia não conduz necessariamente à verdade, mas protege com alguma eficácia do delírio da mentira.

É claro que todo o poder, em todo o lugar, mente. Há até ocasiões codificadas em que a mentira recebe as graças da legitimidade. Mas a Rússia parece exorbitar tradicionalmente no capítulo. A guerra não é guerra, é uma “operação militar especial” destinada a livrar os ucranianos do jugo nazi. Etc. É como no tempo dos processos de Moscovo, em que a velha elite bolchevique que vinha de Outubro foi dizimada por supostamente ser aliada de Trotsky, por sua vez aliado dos nazis. E havia quem, no Ocidente, acreditasse que todas aquelas confissões, arrancadas pelo velhíssimo método da tortura, qualquer que seja a parte de verdade da explicação de Koestler em O zero e o infinito, eram verdadeiras, que Bukharin e os outros conspiravam com Trotsky e Hitler. Hoje em dia, o mestre dos significados não se chama Estaline, chama-se Putin. E há quem, na Rússia e por cá, continue a acreditar na colossal mistificação. Agora não é Trotsky que é nazi: é Zelensky. Mas, tirando isso, o estilo é o mesmo.

Que se possa mentir assim basta para que tenhamos a vertigem que sempre se experimenta quando nos confrontamos com algo que ultrapassa em muito a nossa imaginação. Que se possa acreditar nessas mentiras praticamente ilimitadas é, se possível, ainda mais surpreendente. As pessoas normais, dizia alguém, não sabem que tudo é possível. Mas é exactamente essa possibilidade infinita que aqueles que acreditam nas mentiras de Putin exibem ao mais desprevenido olhar. Tudo é possível. Contrariamente às aparências, é o mais terrível pensamento que se pode ter.

Há, no entanto, talvez uma explicação para uma tão abissal facilidade de acreditar. É que as mentiras dos mestres do significado evidenciam, aos olhos dos crentes, a presença de uma vontade forte e irresistível. Com efeito, mentiras de tal magnitude, que ostensivamente nada têm a ver com a realidade, só podem originar-se em alguém dotado de um poder identicamente ilimitado. Isso fascina o crente e enche-o de admiração. Subjuga-o. Quanto mais inacreditável, maior a subjugação. E é exactamente aquilo que o crente quer: ser subjugado pelo poder. A partir daí, acreditar que a Ucrânia é um ninho de nazis e que Putin salva as crianças ucranianas custa pouco. Na condição de se padecer de um servilismo extremo face àquele que imaginamos dotado de uma incomensurável vontade, custa pouco. E há gente assim. De facto, tudo é possível.

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