No dia 1 de Janeiro deste ano, o JN publicou um artigo intitulado “Sete ucranianos acusados de crime de ódio contra dona russa de loja em Braga”.
O artigo foi baseado na acusação do Ministério Público e nos comentários do defensor dos arguidos.
No início de março de 2022, um grupo de cidadãos ucranianos entrou numa loja em Braga, propriedade de uma cidadã russa e verificaram que a bandeira ucraniana estava colocada ao lado da bandeira da Federação Russa e da bandeira da extinta URSS (que os ucranianos associam principalmente com o Holodomor e perseguição com base na identidade nacional). Tendo ficado revoltados com tal falta de respeito solicitaram que fosse retirada a bandeira ucraniana.
A dona da loja recusou retirar a bandeira e mais tarde recusou vender todos os símbolos ucranianos aos ucranianos.
Isto causou uma troca de acusações verbais de natureza exclusivamente política decorrente da bárbara agressão russa à Ucrânia e, sobretudo, ao povo ucraniano.
Não obstante o exposto, a dona de loja chamou a polícia que, ao chegar, pediu os ucranianos para abandonarem o local, tendo procedido, porém, à identificação dos mesmos.
Dez meses depois, os Ucranianos receberam uma acusação do Ministério Público pela prática do crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência previsto no artigo 240 nº 2, al. a), b), c) e d) do Código Penal.
Como cidadão ucraniano, entendo a motivação desses sete ucranianos, principalmente no início da guerra, mas não concordo com essa forma de manifestação de protesto. Contudo, acredito que a justiça de Portugal levará em consideração todas as circunstâncias do caso e dará uma sentença justa.
No entanto, este caso levanta toda uma série de problemas sócio-políticos cuja complexidade se verificará sempre que tais casos se repetirem.
O problema dos tradutores em processos em que intervenham migrantes ucranianos
Recordemos o caso do homicídio de Ihor Humenyuk no aeroporto de Lisboa. Houve um facto importante nesta história que não foi muito falado: a primeira tradução do inquérito de Igor por funcionários do SEF foi feita por uma agente em língua russa. Quem garantiu que Igor entendeu tudo e que essa pessoa traduziu corretamente as intenções de Igor em relação à sua visita a Portugal? Deficiente tradução pode ter sido o principal elo na cadeia de factos que levaram à sua morte.
Que conhecimento têm as autoridades portugueses de que as línguas russa e ucraniana são distintas? Existe alguma entidade em Portugal que faça a triagem? Com a agravante de os russos não reconhecerem os ucranianos como um povo autónomo e com uma língua própria.
A grande maioria dos russos apoiou a anexação da Crimeia e a tomada de Donbass. Como garantem as autoridades portugueses que um tradutor russo ou um cidadão ucraniano que apoie Putin não traduzirá deficientemente com o objetivo de prejudicar um cidadão ucraniano apenas por motivos chauvinistas?
Eu frequentei estabelecimentos de ensino com línguas Russa e Ucraniana e, por isso, sei do que falo. No caso concreto, em Braga, tive oportunidade de ouvir as gravações áudio durante o conflito na loja russa e posso afirmar que as frases em ucraniano e russo, tal como são apresentadas na acusação do Ministério Público, e a seguir no artigo do JN, não correspondem à tradução correta em Português. Então, quem fez a tradução? Como pôde o procurador do Ministério Público avaliar que a tradução era autêntica? A própria vítima, uma cidadã russa, entendeu corretamente as palavras dos cidadãos ucranianos? Como foi possível que no interrogatório na polícia judiciária a tradução entre inspector e arguidos ucranianos fosse feita por uma intérprete da língua russa. Novamente surge a pergunta: quais são suas opiniões políticas? Ela é pró-Putin ou pró-Ucrânia?
Acho que no 9º ano da agressão russa, os órgãos de segurança de Portugal devem levar em consideração esse aspecto para decisões justas.
Quais as medidas para prevenir os conflitos entre ucranianos e russos em Portugal?
É conhecido, que após a revolução de 1974, a URSS, ou seja, a Rússia, ganhou amplo acesso aos meios políticos e universitários de Portugal. Como migrantes ucranianos sentimos isso quando chegámos em massa no início do novo século. Quase ninguém sabia distinguir os ucranianos como um povo autónomo e com uma história de mais de mil anos. Na escola e nas estudos académicos de história em Portugal, a Ucrânia quase sempre foi mencionada como parte da Rússia. Ainda hoje, a Santa princesa Olga, que baptizou a Rus de Kiev (não confundir com a Rússia, que adoptou este nome no século XVIII), é referida nos livros de história em Portugal como “Santa Ortodoxa Russa”, o que não pode ser verdade, porque no século IX ainda não havia divisão da Igreja Cristã em Ortodoxa e Católica.
Mas, mais importante e que está nos preocupar, a sensação de que existe uma certa proteção em Portugal relativamente à Rússia em detrimento da Ucrânia pelas instituições que têm como função prevenir discriminação por nacionalidade.
Concretamente, o Alto Comissariado para Migração constantemente discriminou os ucranianos com base na nacionalidade. Começando com o nome no Conselho de Migração, onde éramos oficialmente chamados como “De Leste” e não da Ucrânia, e até já depois de 24 de fevereiro, quando a Alta Comissária foi informada sobre problema das organizações pro-Putin em Portugal, mas mesmo assim recomendou aos refugiados ucranianos que procurassem apoio na organização pro-Putin “Edinstvo”, em Setúbal.
Infelizmente, essa tendência não parou até agora. As organizações pró-Putin continuam a ter acesso aos migrantes Ucranianos, onde continuam a sua propaganda. Em situação vulnerável os refugiados têm medo de reclamar para não serem prejudicados.
Dez meses da guerra/agressão em grande escala, com toda a violência cometida pelos militares russos na Ucrânia, mostraram que os ucranianos não generalizam os russos e sabem distinguir entre quem também sofre com o regime de Putin e quem o apoia. Muitos russos estão lutando ao lado da Ucrânia contra o regime do Kremlin. Há russos em Portugal que saem com os ucranianos em manifestações contra a guerra, quem condene a agressão de Putin nos meios de comunicação. Independentemente da nacionalidade, pessoas lutam por valores comuns de paz. Esta guerra não é entre russos e ucranianos, mas entre um regime autocrático e o mundo livre.
O que é falso é quando apoiantes do Putin em Portugal colocam crianças ucranianas ao lado de russos na escola com apelos à paz. Aí não se trata da intenção de parar de matar crianças ucranianas. Usam crianças para fins políticos. Para criar uma pressão pública para parar o fornecimento de armas à ucrânia para sua autodefesa e impedir o direito a recuperar os territórios ucranianos ilegalmente ocupados desde 2014, tudo a mando do desejo expansionista e imperialista de Putin.
No caso de Braga, os Ucranianos entraram naquela loja da cidadã russa e protestaram não porque estivesse em causa uma cidadã russa mas porque estava lá exposta bandeira da URSS junto com bandeiras da Ucrânia e da Rússia. Antes de 24 de fevereiro, isso era aceitável mas, depois do início da agressão com bombardeamentos em massa de cidades ucranianas e homicídios também em massa da indefesa população civil, concretamente crianças, qualquer símbolo de totalitarismo russo junto com a bandeira da Ucrânia revolta qualquer ucraniano.
Se, por um lado, a dona da loja, num país democrático, pode pôr as bandeiras que entenda, por outro lado, quando o governo convida os refugiados ucranianos a encontrar um abrigo em Portugal, tem que ter em conta que estes refugiados trazem o estigma e sofrimento causados pela agressão russa. Muitas deles viram como os soldados russos mataram os seus entes queridos. Por isso proibir os símbolos de totalitarismo e agressão nos espaços públicos seria de elementar bom senso e um passo para evitar sentimentos de ódio e revolta.
O caso de Braga deixa a sensação de que em Portugal pode existir uma justiça seletiva
Como já referido anteriormente, há muitos anos que se assiste em Portugal a um certo lobby político defensor da propagada de Putin contra a Ucrânia, nomeadamente do PCP. Várias vezes este partido com assento parlamentar denegriu publicamente o governo ucraniano, democraticamente eleito e reconhecido por todos os países do mundo, incluindo a Rússia, comparando-o a um regime neo-nazi.
Foi este o principal argumento para Putin começar a agressão e invasão massiva da Ucrânia no dia 24 de fevereiro.
Desde 2014, a nossa e outras associações de ucranianos em Portugal apelam aos vários ramos do governo e Parlamento para não apoiar a propaganda de Putin.
Em 2019, num evento chamado “Regimento Imortal”, organizado pela embaixada russa e por vários organizações pró-russas, infelizmente também com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa, os apoiantes de Putin agrediram fisicamente os ucranianos que criticaram o uso neste evento das bandeiras das chamadas repúblicas separatistas do Donetsk e Lugansk.
Foram abertos três processos.
No primeiro caso, uma senhora russa do Porto, que modera um grupo no Facebook com 20 mil membros, depois das minhas críticas do evento “Regimento Imortal” perguntou na sua rede social, se alguém tem coragem, para acabar comigo?
Neste caso o Ministério Público considerou que este mensagem não é ameaça e ódio.
No outro caso, um ativista ucraniano foi atacado fisicamente por um indivíduo só porque criticou o Estaline. Em resultado teve danos no seu carro e ferimentos corporais. E neste caso o MP não encontrou fundamento para acusar o agressor.
Também, durante aquele evento, um dos organizadores agrediu uma ucraniana e danificou o seu telefone.
Há três anos que o inquérito continua pendente.
Em abril deste ano, recebi ameaças diretas dum apoiante do Putin. A pessoa que me ameaçou está identificada. Já passaram 9 meses sem acusação do Ministério Público. O homem continua a enviar as mensagem de ódio.
Assim, o caso de Braga não ofereceria qualquer comentário se em situações idênticas, em que estão em causa participações ou denúncias de ucranianos contra russos, por agressões, danos e ameaças, se tivesse seguido o mesmo desfecho.
Com efeito, neste caso, uma discussão política numa loja de uma cidadã russa foi tipificada como crime e deu já origem a uma acusação pública.
A Ucrânia conseguiu resistir até agora os ataques do superior exército russo graças a forte apoio do Ocidente. Desta vez, os países do “mundo livre” não acreditaram na propaganda russa. Mas a guerra ainda não terminou e muito vai depender da continuação de apoio à Ucrânia. O próprio Putin disse que ainda tem ainda muitos “amigos” no Ocidente que estão fazer o seu trabalho.
É triste ver que no século XXI a sociedade, as vezes não dá a importância a que ideologia um dia poderá servir de razão para matar.