O chumbo pelo PS e BE de uma resolução da IL (ainda em Dezembro) que visava introduzir a literacia financeira nos programas escolares evidencia, como muitos disseram, uma visão da Escola e da sua função social como máquina de produzir dependentes do Estado. Mas é também um apocalíptico: no sentido de um elemento catastrófico, difícil de entender e revelador – tudo ao mesmo tempo. O que defendo neste texto é que este apocalíptico não evidencia apenas um problema entre Política e Escola mas é, outrossim, revelador de uma visão da Administração Pública (AP) que é responsável pelo seu estado de paroxismo, ou seja, em convulsão ou ‘estrebuchamento’.
A AP é entendida por alguns como conjunto de práticas (e conhecimentos técnicos e espertezas – de facto, neste sentido não é preciso ciência!) de aceder, gerir e manter o poder. É este tipo de miopia idiota que facilmente justifica o tipo de decisões políticas como a acima referida e que, de facto, possibilita um anarquismo decisional ao serviço unicamente do poder e sua manutenção. Normalmente este tipo de concepção sustenta-se numa visão ainda mais antiga e retrógrada da AP, jurídico-burocrática, e faz-se socorrer de gente que sabe do CPA e de Contratação Pública e ‘não se atrapalha’ (entenda-se, interpreta a lei muito para além dos seus limites sem problemas) com processos administrativos. No entanto, a concepção managerialista da AP (muito em voga e que leva a Direcções Executivas), considerando que o problema é, apenas (sublinhe-se), de gestão e de financiamento é quase tão míope quanto o anterior. E, no entanto, está na boca quer dos políticos, quer dos especialistas e até dos cidadãos (‘O problema é de gestão!’ – que é como quem diz outro a gerir e isto ia ao sítio!). Todas estas visões da AP não têm em conta que o adjetivo ‘Pública’ significa ‘bem comum’ e implica uma ‘acção colectiva’ de uma ‘comunidade de cidadãos’ em torno de valores partilhados (o que é e o que queremos que seja a educação, saúde, justiça e outros) num determinado tempo e espaço. Ou seja, a AP é antes de mais e acima de tudo um conjunto de solidariedades institucionais construídas socialmente em torno de valores durante bastante tempo – sublinhe-se! Se tal desaparece ou, a certa altura, temos a consciência social de que não existe (é o caso), tudo o resto (o poder, o CPA e a Contratação, a gestão…) são acções anárquicas no vazio e condenadas ao fracasso.
Se quisermos ser mais específicos, a Escola Pública é antes de mais uma comunidade de professores, especialistas, técnicos, alunos e famílias que acreditam no valor da educação na actualidade. O SNS é também a crença que une uma comunidade imensa de profissionais e técnicos (médicos, enfermeiros, bombeiros, etc.) e cidadãos em torno do valor e sentido de determinado serviço de saúde. O mesmo com a justiça. Se esse sentido (porque é o sentido que conta) se perde, nada resta. Ora, o que acontece é que devido a uma visão míope e idiota da AP, partilhada por vários políticos, académicos e gestores, a destruição das instituições é clara. A visão míope da AP por parte dos políticos está na origem da situação de paradoxo institucional, do comprometimento profissionais em dissonância cognitiva, levando a um paroxismo das instituições e do serviço público como um todo. Mais do que fragmentarmos a análise em cada caso em particular (quase todas as semanas há um), há que identificar o problema geral: de uma determinada visão da AP e a sua necessária transformação. A colocação dos cidadãos no centro e a escuta ativa das comunidades institucionais é fulcral para que Educação, Saúde e Justiça sejam refletidos com tempo no espaço público. Para que constituam espaço público! Não apenas de contestação, mas de criação de futuros. O futuro e a transformação são fundamentais pois só se sabe onde se está/esteve quando se sabe para onde se vai. Quanto ao demais, a passagem da hierarquia à rede, as possibilidades acrescidas de mobilidade para que instituições e pessoas se encaixem, um maior escrutínio e avaliações mais sérias, a digitalização desburocratizadora (pois até agora trouxe mais burocracia pela pluralidade e não interoperabilidade das plataformas) e a desinstitucionalização dos processos poderão ajudar. O resto terá forçosamente de sair da escuta activa pois é com as comunidades institucionais que os políticos têm de encontrar os caminhos comuns.
Professores, médicos, enfermeiros, funcionários judiciais e outros vivem no presente o paradoxo da função das instituições públicas (educar/subordinar na educação; prevenir/remediar na saúde; dissuadir/processar na justiça). O comprometimento profissional entra assim em dissonância cognitiva entre o espírito de missão e o prestígio social (em parte perdido) e a competência profissional (desperdiçada), por um lado, e, por outro, a precariedade (em alguns casos), a parca recompensa salarial, a subordinação organizacional e o burnout. O resultado é o paroxismo (uma convulsão ou ‘estrebuchamento’) das instituições, uma doença institucional efetiva em que cada vez mais são visíveis três estratos: os cratopatas (que interiorizaram a visão do poder como único objetivo, reproduzindo a visão errada da AP nas instituições e entendendo-as como mero espaço de guerra pelo poder sem escrúpulos); os fóbicodependentes (presos ao valor do trabalho em que foram educados acabam doentes: medo difuso, depressões, ansiedades, ataques de pânico, síndrome vertiginoso e outras somatizações várias) e os trânsfugas (que desistiram, esperam a reforma, procuram novos objetivos, perdem-se na net ou vão ao ginásio). Os reflexivos quase não existem: foram exterminados. E ninguém está seriamente a medir os custos escondidos de tudo isto: brain drain, profissionais e competências perdidas, equipas com anos de experiência desperdiçadas, conhecimento que deixou de passar entre gerações, investigação sem continuidade, etc. Enfim, dinheiro dos contribuintes deitado ao lixo! O futuro no lixo!
Ironicamente, podemos até dizer que a Justiça, a Saúde e a Educação e as suas instituições são um sucesso. Comecemos pela Justiça para percebermos melhor as ironias de tudo isto. As prisões nunca estiveram tão cheias em Democracia (atingiram um pico em 2019 e só a Lei 9/2020 de perdão de penas e indultos no quadro da pandemia é que possibilitou uma pequena quebra), em 2023 dois terços dos estabelecimentos prisionais estão com lotação de alto risco (acima dos 90%), faltam técnicos e as dimensões das celas não cumprem as normas internacionais. Não sei se já há gente que comete delitos porque é mais barato viver na prisão (como no Japão) mas a média do tempo de duração das penas em Portugal é três vezes o da média europeia e há gente que tem receio de sair ou não quer mesmo sair (como foi noticiado quer após a crise de 2010, quer no período da pandemia). Os hospitais também, como se vê, são um sucesso de bilheteira. Somos o país da OCDE que mais recorre a urgências e o tempo de internamento é superior à média dos demais países. Temos também gente que não quer ou não consegue sair deles pois não há outros equipamentos nem as famílias têm condições para os acolher. Talvez assim, se perceba melhor o (in)sucesso das nossas escolas e universidades: somos o país da OCDE em que as crianças (1º e 2º ciclos) passam mais tempo na Escola e o país da OCDE com quase o dobro da média dos estudantes a seguirem para mestrados… Como nas prisões e nos hospitais, é mais fácil continuar para um mestrado do que frustrar as expectativas próprias e dos pais, ganhando uma miséria por mês. As universidades deveriam ensinar para uma sociedade feita de/por empresas. Mas o perfil de saída é maioritariamente de um trabalhador por contra de outrém! A literacia financeira e empresarial é pouca ou nenhuma. Aliás, os professores estão impedidos de ser sócios de empresas (diz o SNESUP na sua página– sindicato do ensino superior!)… ao contrário de ministros e candidatos a Primeiro-Ministro. Portanto, essa ideia das start-ups e spinoffs com professores e alunos e transferir conhecimento para a economia no sentido da ciência e a tecnologia estar ao serviço dos ‘desafios societais’ são estórias! Não admira, pois que os empresários em Portugal tenham em média baixas habilitações!
Portugal é, assim, um país em que toda a comunidade de encarcerados, hospitalizados e escolarizados… passa mais tempo nas prisões, hospitais e escolas do que devia porque nenhuma dessas instituições está a cumprir o seu papel, a não ser gerir reincidentes, doentes e dependentes. Mas de facto, é toda uma visão da Administração Pública que está em causa e que tem de ser mudada.