Catch 22 é um romance de referência do século XX (e um filme de humor negro de 1970) sobre o absurdo da guerra e da irracionalidade das acções humanas. O desprezo pela vida; o poder como única legitimação de qualquer fazer; a ambivalência ética tornando qualquer acção boa e má ao mesmo tempo; a injustiça da justiça sobrepondo a defesa e o juíz na mesma pessoa ou instituição sem qualquer escrutínio externo…a ausência de heróis e a existência de cada vez mais vítimas. Enfim, uma sociedade em burnout em que nem invocar o burnout possibilita uma saída! O Catch 22 ficou conhecido por estas circularidades em paradoxo e serve-nos neste texto para propormos uma reflexão sobre algumas das principais circularidades em paradoxo em Portugal.

A Dívida é o mais antigo garrote da humanidade. A dívida transforma-nos em reféns, mas, ao mesmo tempo, é um laço social fundamental para o alargamento das sociedades. A dívida está, desde tempos imemoriais pela instituição do ‘dote’, na base da sociedade possibilitando um contrato entre dois grupos estranhos entre si pelo casamento dos seus filhos. É a mesma lógica que possibilita checks and balances num quadro de uma ‘casa comum’ mais alargada como os Estados-Nação em Regiões Internacionais. A dívida e a vida estão, assim, inelutavelmente entrelaçadas. E a sua circularidade em paradoxo engrena-se noutras duas, aumentando a complexidade: o Poder e o Fazer, a Burocracia e a Literacia.

Em período eleitoral, insiste-se em prometer a Vida, solicita-se o voto como forma única de chegar a Fazer e apela-se à Literacia para que o povo vote de forma informada. Já no governo é a Dívida e suas condições que rege a Vida; é o Poder (a todo o custo) que subordina o Fazer; é a Burocracia que regula a Literacia. A dificuldade é conseguir uma relação equilibrada entre a Vida e a Dívida, entre Poder e Fazer, entre Burocracia e Literacia que privilegie a Qualidade de Vida, o Saber-Fazer e a Meritocracia.

A Dívida ou a Vida

Quando se aposta tudo na Dívida parece colocarmos a Vida em causa e quando prometemos a Vida, o que temos receio é, portanto, do aumento da Dívida. A isso se resumiu grande parte da luta eleitoral.

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A verdade é que se só nos focarmos na Dívida, claro que conseguimos financiar a economia de forma mais sustentável mas a Vida que se perde (pela pauperização da saúde, educação, emprego e, acima de tudo, das perspetivas de futuro) leva a lucros perdidos que não são medidos mas que porventura colocam em causa os ganhos que se conseguiram pela centralidade da Dívida. Trata-se assim, de um primeiro paradoxo português. Conseguir que a Dívida não nos dê cabo da Vida e que a Vida não resulte só em mais Dívida é, desde logo, a ‘fórmula de ouro’ de um qualquer próximo governo.

As propostas feitas em campanhas eleitorais de mais dinheiro direto no bolso (importante pois os nossos níveis de rendimentos são baixos) não são, necessariamente as melhores. Entre a Dívida e a Vida deveríamos ter uma aposta na Qualidade de Vida. Mais respeito, melhor educação, melhor saúde, mais habitação e melhores transportes públicos: em suma e acima de tudo, melhores instituições e melhores cidades.  Tal significaria menos ansiedade e despesa (ou vice-versa) e logo, mais segurança existencial, menos gastos, mais capacidade de enfrentar o futuro e, portanto, mais possibilidade de investimento a médio-longo prazo. Se não for essa a opção, a de uma mudança estrutural, mais dinheiro no bolso dos portugueses é provável que redunde apenas em mais dívida em Mercedes e BMWs!

O Poder ou o Fazer

A Dívida, mais importante do que a Vida, relaciona-se diretamente com o Poder…e o impoder. Quem não tem poder há-de estar, em Portugal, sempre em Dívida, por muito que possa ou queira Fazer. Essa é a ideia, pois considera-se que em Portugal só quem tem Poder pode Fazer. Há, assim, uma corrida ao poder e ao domínio do Estado e suas instituições que é legitimada pela expectativa de um anunciado e programado Fazer. Ora, o problema é que esse Fazer passa a estar dependente completamente do Poder.

Caso alguém queira fazer algo por vontade e mérito próprios terá sempre de pagar ‘o piso’ do poder, seja por vassalagem ou em espécie. A dívida é, assim, a cultura do próprio poder. Não é possível fazer quase nada (ou nada) que não seja em função de uma delegação de poder. O Estado e o seu Poder tornaram-se, assim, o grande empecilho do Fazer.

Convém que o acesso ao poder não impeça o fazer e que o fazer não esteja completamente dominado pelo poder. Tal situação faz com que tudo se prometa fazer em campanhas eleitorais porque o fundamental é aceder ao poder. Aceitar uma cultura em que é preciso aceder ao poder para fazer significa tão só que o poder é mais importante do que o fazer: tal não é mais do que o abuso do poder, a corrupção e a sua legitimação.

Mais do que a circularidade em paradoxo do Poder e do Fazer, precisamos de uma cultura estatal, da administração pública e das instituições em geral que privilegie o Saber-Fazer. Ou seja, que possibilite e, mais do que isso, que premeie a iniciativa e a inovação e não apenas e só, e sempre, a submissão. Para tal precisamos de processos menos dependentes dos pequenos poderes das pequenas instituições estatais, de ir além da ‘dedocracia’, possibilitando iniciativas/propostas e avaliações de carreiras mais inter-institucionais, nacionais e internacionais e mais double-blind: enfim, de uma sociedade mais aberta e cosmopolita.

A Burocracia ou a Literacia

Este paradoxo português da Vida e da Dívida e do Poder e do Fazer é suportado no dia-a-dia por um outro: a Burocracia do cancelamento versus a Literacia do investimento. Uma lógica de controlo que a Dívida implica resultou numa cultura política e da administração pública de controlo…de tudo: dos gastos, das pessoas, dos processos…. Enfim, uma gestão por regulamentos e templates que redunda numa cultura de cancelamento de muitos (quase todos) e que acaba numa completa perversão: com despesas legitimadas pela mera manutenção do controlo e sem qualquer literacia do investimento. Ou seja, corrupção na sua definição mais lata: abuso de um poder confiado para ganhos privados.

Ora, tendo em conta que grande parte da economia depende direta ou indiretamente do Estado, a lógica do Poder legitima de facto uma ditadura executiva, numa democracia de arquipélago e enclave, feita de instituições que não são senão pequenas aldeias em que duas ou três pessoas (por vezes sociopatas, muitas vezes medíocres) decidem por todos com a conivência de todos os incumbentes escrutinadores, eles próprios entalados entre os processos da dívida, do poder e da burocracia.

O resultado é, assim, ainda e sempre, o garrote da Dívida e a reprodução do Poder pelo poder e a sua legitimação num dia-a-dia de Burocracia que impõe uma Literacia da subordinação e mesmo cancelamentos. A mudança das ‘confianças pessoais’ e ‘confianças políticas’ para uma centralidade da meritocracia é fundamental.

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Estas eleições revelaram um país insatisfeito com mais de um milhão de vozes. Houve uma reacção aos diversos tipos de Estado e ao estado a que isto chegou. Numa lógica de ‘ondas de democratização’ e de ‘des-democratização’ (Huntington), podemos temer que quando cerca de 20% de jovens protestam de uma forma ou de outra (quer dizer, saindo do país em massa e votando fortemente no Chega), estamos perante o risco do início da terceira ‘onda de des-democratização’. Claro que a atracção da juventude também em partidos como o Livre e a IL nos leva a interrogar até que ponto tais diferenças são um mero epifenómeno eleitoral ou antes novas arenas públicas em acção. O futuro próximo nos dirá mas esse combates e encenações não deveriam ser deixados ao acaso das circunstâncias.

Em Portugal foi uma sociedade mais exigente e liberal que substituiu em 1910 uma monarquia de oito séculos por uma República e que, apenas dezasseis anos depois, perante o desencanto e o caos instalado, resultou em ditadura. Também agora, é notoriamente uma sociedade mais aberta e mais liberal que já não suporta a situação do estatismo asfixiante em Portugal e, caso não haja mudanças por parte dos partidos que já as deviam ter criado, acabará, por paradoxal que seja, por dar a vitória a alguém que imporá um regime iliberal para que isto mude à força.