A entrada no parlamento do deputado da Iniciativa Liberal, João Cotrim Figueiredo, encorpou, finalmente, um verdadeiro debate ideológico no seio da democracia portuguesa, alastrando-se, evidentemente, para a esfera civil. Ter-se-ia de remontar à sua alvorada, ao período pós-25 de Abril, para encontrar um clima tão politicamente rico capaz de ombrear com o atual. O Livre de Rui Tavares perfilava-se como uma sólida peça deste novo mapa, com a oportunidade de trazer a jogo uma esquerda cosmopolita, marcadamente pró-europeísta. Oportunidade essa que o Livre de Joacine Katar transformou em desastre, pela mão da sua deriva hiperbolicamente identitária e jornada fratricida que tem vindo a promover, eclipsando a miragem do surgimento de uma esquerda menos reacionária.

Este duelo, que põe a nu visões bastante diferentes para o melhoramento das condições de vida dos portugueses, traz benefícios não só para a nossa máquina parlamentar per se, mas também, tão ou mais importantemente, para a cultura política nacional. A observância de argumentações com um teor visivelmente distinto a nível económico, social e, até, filosófico na Assembleia da República, e o eco que delas é feito na comunicação social, conduz a uma reflexão capaz de enquadrar e melhor compreender, a título individual, o posicionamento político de cada um. Quanto mais o debate for alimentado por uma saudável discórdia político-cultural, menor será o espaço para os remoques jocosos, palmas irónicas e mesquinhices paroquiais.

A evolução do COVID-19 tem feito com que este combate recentemente estreado, opondo liberalismo e socialismo, se envolva mais num cenário tribal do que propriamente num pautado pela racionalidade. É notória, nas redes sociais, a campanha panfletária que a esquerda radical tem adotado, numa tentativa de demonizar o liberalismo, ainda que à custa de um discurso demagogo e incorreto que confunde, numa sopa ininteligível, conceitos de anarquismo e liberalismo. Este empreendimento parece levar à criação de um instinto pavloviano nos seus fiéis seguidores, que prontamente se dispõem a ciberguerrilhar na cruzada pelo profetizado fim do “neoliberalismo” – com toda a carga negativa adjacente com que têm incutido esta palavra –, como é já tradição em alturas de crise, desde as financeiras às sanitárias.

Dizia Ana Gomes no episódio do podcast do Observador Vichyssoise da passada sexta-feira o seguinte: “(…) não podemos cometer os mesmos erros, designadamente continuar num esquema turbocapitalista que desconsidera as implicações na natureza e que depois dá situações como esta, de contaminação entre animais e os seres humanos”. O capitalismo é, portanto, condenado como o grande culpado desta pandemia: um promíscuo veículo de transmissão de doenças entre o Homem e os animais. Sempre assim o fora, basta recordar o esquema turbocapitalista da Idade Média, que, no século XIV, conduziu à morte de 1/3 da população europeia. Os neoliberais de então não resistiram às neoliberais pulgas que dos neoliberais ratos saltaram para os dizimar.

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O que a esquerda parece não compreender (ou não quer compreender, pois que não favorece a sua agenda), devido à sua inflexibilidade ideológica, é que os liberais não se batalham pela defesa de uma entidade mística e endeusada – o “mercado” – como o seu objeto final. O liberalismo advoga, somente, uma visão diferente para o bem-estar social, baseado na liberdade individual. Tal não é assim entendido pela esquerda radical, que, do alto do seu idiossincrático patamar de superioridade moral – paladinos únicos e açambarcadores das causas sociais –, entrevê de forma maniqueísta os liberais como um bando de fervorosos burgueses, comprometidos em implementar um maléfico plano malthusiano para limpeza dos mais desfavorecidos.

É neste panorama que é propagado o fanatismo religioso, a incompreensão e, até, aquele tom jocoso, sempre implicitamente cristalino, com que a esquerda tem colorido o seu estigmatizante discurso, para que em Portugal não haja espaço para o arborescer de uma verdadeira cultura liberal. A título de exemplo, basta recordar a exultação que se verificou nas redes sociais com o episódio do extemporâneo e falacioso trocadilho da “Iniciativa Estatal”. Não interessando, claro está, que, entre defender que um árbitro não deve poder marcar um golo e preconizar o desaparecimento desta figura, a diferença é abismal.

Entretanto, assistimos a tweets de deputados bloquistas apelando a uma intervenção forte da União Europeia. “Penso que a União Europeia seria uma excelente ideia.”, escrevia, a 27 de março, José Manuel Pureza, autor do livro “Desobedecer à União Europeia”, logo corroborado pelo eurodeputado José Gusmão. Ora, não é de todo desconhecida a posição do Bloco relativamente à União Europeia. Resumindo: temos um partido manifestamente cético face ao poder centralizado de uma estrutura, geralmente caracterizando-o de canibalesco para com individualidades mais localizadas, a defender uma ação mais impactante da mesma numa situação de crise. Déjà vu? Certamente que não, quaisquer semelhanças entre esta linha de pensamento e a apresentada pelo deputado da IL, que deu origem ao regozijo da esquerda como consequência do cognome “Iniciativa Estatal”, serão meras coincidências, e em momento algum o Bloco de Esquerda metamorfosear-se-á em Bloco de Bruxelas.

Ressalvo, em jeito de remate, que concordo com José Manuel Pureza. Urge uma resposta forte da União Europeia, capaz de cimentar a sua integração e convergência, e que, como resultado desta crise, possamos vir a ter uma União mais solidária e ágil. Uma União que inspire os seus cidadãos a mais ativamente participar na sua progressiva construção, ao invés da sua destruição. Considero apenas curioso, e contraproducente para a nossa atualidade e crescimento político, que as mesmas mentes que dão voz a uma campanha incongruente e desinformada, caiam na adoção de uma macro estratégia que difamam. Pede-se mais ou melhor a esta franja da nossa democracia, não só hoje, mas sempre.