O tribalismo patente no debate político nacional tem crescido a um ritmo estonteante, desbordando, com estrondo, nas redes sociais. Formados os contingentes, escavadas as trincheiras e escolhidas as adjetivais armas, disparam-se as balas para decidir qual o melhor, ou o menos mau, extremo político, pese embora a discussão rara e felizmente seja, na verdade, entre as próprias radicais franjas.

A complexidade da questão atesta-se através do exagerado simplismo com que uma grande porção dos beligerantes a trata, que atinge o seu cúmulo na excessiva serventia da designação fascista instrumentalizada pela brigada da esquerda para nomear uma substancial parte do que lhe é contrário ou estranho. Pejada do virtuosismo moral com que normalmente rodeia as suas crenças políticas, uma fração da extrema-esquerda portuguesa – que muito deve à geringonça pela consumação da sua normalização entre os millennials – recusa-se a admitir o cariz, ou, desconstruindo, a raiz antidemocrática das bandeiras que defende. Demais, escusa-se a reconhecer que os seus opositores naturalmente não são, na sua larga maioria, fascistas. São almas que, simplesmente, não concordam com a sua visão e que se impressionam com a ostentada dualidade entre a adoração de um extremo e a devoção por outro.

Qual terá, então, sido a ideologia menos negativa: extrema-esquerda ou direita? Nenhuma, o debate é inerentemente infrutífero e inócuo. Ambas dão continuidade a um fundamentalismo nefasto que massivamente destruiu vidas humanas e danificou as suas gerações vindouras. Ambas silenciaram, prenderam e mataram de forma a continuarem vivas na sua demanda totalitária, deixando uma sombra indelével no século XX. E, no entanto, ambas são “boas”. “Boas” no sentido que ainda existem materialmente, no sentido que ainda têm de ser eliminadas, não tanto pela sua ostracização e proibição, mais através do debate e educação. É o debate não coercivo que melhor riposta o fundamentalismo a médio e longo prazo. É esse o clima de voluntarismo, de convencer o outro, que terá de ser cumprido de forma a que essas ideologias bárbaras e anacrónicas não transcendam a sua existência de tinta num livro de História para um dogma embutido num espírito humano.

A larga maioria democrática que compõe a direita portuguesa deverá contribuir para esse debate, gostando dela própria. Deverá nutrir os seus valores, afastando-se e demarcando-se audivelmente desses miasmas de outros tempos, que circunstancialmente têm surgido, atingindo o seu pico mediático com a ameaça dirigida a Mariana Mortágua, Joacine Katar Moreira e Beatriz Gomes Dias e membros da SOS Racismo. O lugar-comum de justificar o injustificável com a omnipotência da brigada do politicamente correto não é, definitivamente, uma estratégia vencedora. Não só diminui o valor futuro deste argumento – que, casado com o seu braço armado, a cultura de cancelamento, é indubitavelmente uma ameaça ao individualismo e liberdade que os nossos modernos sistemas democráticos prometem –, como também normaliza atitudes desprezáveis como esta da Nova Ordem de Avis.

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Pelo seu lado, a extrema-esquerda terá, a certo ponto, de repensar o seu jogo de caráter profundamente identitário com que tem abordado a atualidade. Obviamente que não se poderá culpar a esquerda pelo crime, mas certo é, que para cada ação existe a sua reação: abrir e explorar uma política notoriamente identitária e não antever o surgimento deste tipo de acontecimentos é como alcatifar uma cozinha esperando que não se suje o chão.

O crime perpetrado por esse grupo, e o seu adjacente teor racista, representa um fenómeno grave, mas não é o apelo às armas que a esquerda radical espera para ver corroborada a sua tese e continuar o movimento identitário e eleitoralista, esquecendo-se que quem nasce dentro dessa política tribalista, sendo por ela consumida, dificilmente terá propensão para uma discussão política, social e económica mais alargada – a ação política, nesse caso, consubstancia-se por completo na defesa dessa tribo face à agressão do outro.

Esperemos, ainda, que este triste episódio da ameaça não abra as portas a um policiamento cibernético que muitos já aplaudem acriticamente. Se as pessoas que integram esses movimentos radicais sentirem dificuldade em exprimir-se livremente, ou, pior, não observarem ninguém a advogar uma opinião semelhante à delas por ser proibido – repito, proibido – fazê-lo, certamente encontrarão e construirão caminhos de contactar com essas visões. Claro está, que será um contacto num ambiente bem mais sectário, fundamentalista e hermético, dado que, nos grupos onde esses radicalismos forem professados, decerto não existirá um contrapeso, um argumento contrário a essas teses que possa cultivar no espírito, pelo menos, uma dúvida quanto à validade dos ditames que lá estão a ser edificados.

Todas as cores políticas têm um papel importante a desempenhar nestes tempos: o de ser a voz que reivindica um presente e futuro mais livre, que dê mais autonomia aos cidadãos para se construírem da forma que desejem, independentemente da etnia ou do código postal em que nasceram. Uma voz que olha adiante enquanto escuta o passado, passado este que recomenda mais casuísmo, e menos tribalismo.