Algumas semanas atrás escrevi aqui sobre as alterações que se preparavam à lei 16/2007. Na altura falava-se sobretudo de taxas moderadoras e prestações sociais. Mas se as taxas foram criadas (e bem), as prestações sociais ficaram. Em contrapartida, fomos surpreendidos pelo súbito aparecimento de um segundo projecto de lei que retoma outra proposta da ILC – Pelo Direito a Nascer: a saber, a obrigatoriedade de “acompanhamento” no período que medeia entre o pedido e a realização do aborto. Não vou discutir se os procedimentos parlamentares seguidos foram ou não correctos porque confesso a minha abissal ignorância no tema. Mas não é preciso perceber de procedimentos parlamentares para achar incompreensível esta súbita captura da coligação por um movimento fundamentalista que é claramente minoritário na sociedade portuguesa (e não me falem nas 48 mil assinaturas: certamente os movimentos pró-aborto conseguiriam reunir número igual, talvez mais; não é suposto que os deputados da República se dobrem à cultura do abaixo-assinado). Nem para considerar que tal captura é preocupante.

Nem todas as culturas e religiões têm do feto e do aborto o mesmo entendimento que os católicos. Nem mesmo as “religiões do Livro” (cristãos, muçulmanos e judeus) concordam entre si. Só para dar um exemplo os judeus reformistas entendem que “a decisão deve pertencer à mulher em cujo corpo o feto está a crescer” e que o aborto se pode justificar quando “os pais acreditam que o nascimento os colocará numa situação impossível”. E Portugal não é um Estado confessional.

Em 2007, a maioria dos cidadãos pronunciou-se em referendo pela despenalização do aborto de forma muito clara. Continua a ser legítimo discutir qual o papel do SNS. É até legítimo defender um novo referendo: já houve dois, pode haver um terceiro. Não me parece legítimo tentar dar a volta na secretaria àquilo que foi uma decisão soberana da república.

Haver apoio às mulheres que decidem abortar (aconselhamento, esclarecimento, alternativas) é razoável e desejável. O que não é legítimo é que esse apoio seja compulsivo. Ao contrário das taxas moderadoras, consultas compulsivas são uma uma violação pura e simples da liberdade individual de quem toma uma decisão que está dentro dos limites da lei. É difícil ser mais iliberal.

Ao Estado e à República cabe decidir se o aborto é penalizado ou não é. Se custa dinheiro ou é grátis. Dispensa-se o paternalismo.

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