Esta terça-feira Donald Trump cumpriu uma das mais polémicas promessas eleitorais: declarou que vai transferir a embaixada dos Estados Unidos em Israel de Tel Aviv para Jerusalém. Ainda que mais uma vez se trate de uma crise anunciada, levantou, esta também, um coro de protestos internacionais, ainda que o presidente americano tenha enquadrado esta decisão num plano de paz que ainda ninguém sabe bem qual é. Mas sabem-se três coisas: que Jerusalém é, desde sempre, uma das questões que impede a concretização de um acordo de paz no conflito israelo-palestiniano; que há uma nova centralidade de dois estados – Israel e Arábia Saudita – nas contas estratégicas dos EUA para o Médio Oriente; e que o conflito entre Israel e a Palestina estava a perder centralidade, que pode ter voltado a ganhar agora.
Vamos então ao primeiro ponto: a última vez que houve uma tentativa séria de encontrar uma solução pacífica para o conflito israelo-palestiniano foi há 17 anos, na Cimeira de Camp David que reuniu Ehud Barack e Yasser Arafat sob a mediação de Bill Clinton. Ainda que o então inquilino da Casa Branca tenha feito todos os esforços para que se chegasse a um acordo (não fosse essa a herança que Clinton queria deixar para a história) não houve entendimento em relação a três fatores fundamentais: o número de refugiados palestinianos que poderiam regressar, o contorno das fronteiras, e o estatuto de Jerusalém.
Na verdade, este sempre foi o problema central: do ponto de vista simbólico – eu diria quer religioso, quer laico – Jerusalém é o símbolo da vitória (ou derrota) de uma das partes do conflito. Por isso que não haja ilusões: o passo dado por Trump a Israel é enorme e configura a possibilidade real do reacendimento do conflito (que já estava meio moribundo) e a de uma reação negativa profunda do mundo muçulmano. Quer se goste quer não, os símbolos religiosos, especialmente em religiões mais públicas que privadas como o Islão, têm um potencial muitíssimo destrutivo, incluindo no que respeita à instrumentalização das ruas para fins políticos.
Não vão faltar vozes a dizer que Donald Trump cedeu ao lobby judaico nos Estados Unidos. Mas a verdade é que isso não faz muito sentido. Os judeus norte-americanos são maioritariamente democratas – e esta eleição não foi exceção: cerca de 70% votaram em Hillary Clinton. E não há indício nenhum que tenham pressionado especialmente este presidente para que desse este passo (ao contrário do que aconteceu com Obama que teve que recuar no reconhecimento do estado palestiniano, quebrando uma promessa que tinha feito na ONU, para não arriscar a reeleição em 2012). Isso não significa que a política interna não tenha importância; pelo contrário: o eleitorado de Donald Trump tende a ter grande simpatia pela causa israelita, e gosta de ver o presidente cumprir promessas eleitorais e compromissos internacionais assumidos por si próprio (ainda que apoie a desconstrução de compromissos de anteriores presidentes). Daí que Trump tenha justificado esta transferência da embaixada como sendo a coisa certa a fazer. A sua base de apoio terá percebido a mensagem.
Assim chegamos ao segundo ponto, que é o argumento central: o reconhecimento simbólico de Jerusalém como capital de Israel deve ser visto no âmbito de uma nova abordagem americana para o Médio Oriente. A estratégia assenta no favorecimento de dois estados, a Arábia Saudita e Israel, e na declaração de inimizade a um terceiro, o Irão. Riad, e agora Jerusalém, servem para conter e dissuadir o recém escolhido arqui-inimigo. No primeiro caso, Teerão e Riad estão a disputar a liderança regional e o apoio norte-americano à casa Saud é visto como essencial para interromper o poder de Teerão. O segundo, Israel, assegura aos Estados Unidos uma entrada direta na região, ainda que a um preço altíssimo – como acontece sempre em que as amizades e inimizades internacionais estão marcadamente definidas, o que deixa muito pouca margem de manobra diplomática.
Entrámos numa fase de determinação estratégica como há algum tempo não se via. Os Estados Unidos optaram por pôr os estados inimigos em cheque (ameaça de rasgar o acordo nuclear com o Irão – o que não pode ser feito, mas que sublinha a determinação americana em neutralizar o Irão e hostilização da Palestina e o mundo árabe que continua a ver Israel como um inimigo, uma espécie de extensão do Ocidente na região) e dar aos estados amigos os meios para os conterem, ou mesmo para lhes fazer frente, em caso de necessidade.
Chegamos ao terceiro ponto. Em 2006, o académico Vali Nasr publicou um livro, The Shia Revival, em que argumentava que o verdadeiro problema do Médio Oriente no futuro seria a rivalidade entre xiitas e sunitas, acordada pela fragmentação do Iraque, que até à Guerra do Golfo tinha sido controlado por uma minoria sunita. Já se sabia da Al-Qaeda, mas ainda não se previa nem o Estado Islâmico, nem a rivalidade geopolítica entre a Arábia Saudita e o Irão, que levaram necessariamente à secundarização do conflito israelo-palestiniano – como aliás tem sido argumentado repetidamente por Ana Santos Pinto, da Universidade Nova de Lisboa. Mas a tese de Nasr estava certa quanto ao enquadramento das rivalidades naquela zona do globo. Trump de uma só vez, trouxe o conflito adormecido de volta e atirou-se da prancha mais alta para todas estas complexidades.
No final do seu mandato, Barack Obama queixou-se a Jeffery Goldman, da Atlantic, que o Médio Oriente lhe tinha roubado demasiado tempo e energia que gostaria de ter dedicado a outros assuntos internacionais. Trump resolveu mergulhar no Médio Oriente com toda a energia, determinado a definir um status quo que favoreça os Estados Unidos. É pouco provável que a estratégia vingue: porque o Irão não está sozinho – tem a seu lado a Rússia e o controle de grupos radicais xiitas; porque a intromissão num conflito com características tão particulares e complexas como a rivalidade xiita-sunita tem riscos que não se conseguem calcular nem com a mais sofisticada teoria dos jogos; porque o mundo muçulmano tenderá a criar mais anticorpos relativamente a Washington; e ainda porque a revitalização de um conflito adormecido raramente é boa ideia (mesmo que seja visto pela administração como uma espécie de dano colateral).
E, resumindo, porque estas estratégias de soma-zero são como as guerras: toda a gente sabe como começam, mas o resultado final é muito frequentemente imprevisível. E se não bastasse, a história, passada e recente, mostra-nos que mudanças abruptas em quintal alheio raramente correm bem.