A nostalgia é uma coisa que se mete imenso no caminho da razão. Estávamos a ver e ouvir os Pearl Jam, pela terceira ou quarta vez, no Passeio Marítimo de Algés, e a discutir se não haveria mesmo uma certa vantagem na forma como a geração pré-internet consumia a música. Já não falo das referências que só chegavam através do NME e da Uncut a papelarias de nicho porque não estávamos nesse nível, contentávamo-nos com o “Top Disco” do Rui Pêgo e o “Countdown” do Adam Curry; nem sequer da superioridade ou não do vinil, do valor que se dava ao disco que se comprava por três ou quatro contos (15 ou 20 euros, no tempo em que se almoçava por cinco), um mergulho que se fazia de olhos fechados quando se conhecia apenas um ou dois singles e só quando chegava a casa se descobria em que é que tínhamos enterrado as poupanças tão parcamente suadas entre donativos da avó e cortes no lanche. Refiro-me a um gesto ainda mais pelintra e extraordinário: seleccionar as músicas que íamos passar para cassete.

Isto porque, ao primeiro acorde, tínhamos acabado de reconhecer “Elderly Woman Behind a Counter in a Small Town”, entoado a letra completa, identificado o álbum a que pertencia e qual a posição ocupada no alinhamento do disco. Um tema que nunca foi single. Como era possível que o soubéssemos ainda, 30 anos depois do facto, quando hoje parecemos biologicamente incapazes de decorar uma letra inteira dos National? Porque, lá atrás, em 94, algures num sótão em Angra do Heroísmo, Açores, passámos serões inteiros a ouvir o disco (obviamente “Vs.”, segundo longa-duração da banda da inevitável Seattle), emprestado por um amigo mais abonado, até à insanidade parental, com vista a seleccionar que canções íamos gravar para a cassete Maxell e quais teriam de ficar de fora (sim, porque nem para cassetes virgens havia fundos ilimitados).

Quais os benefícios deste exercício tão aborrecidamente anos 90? Bom, em primeiro lugar, a elasticidade da nossa memória, que há-de chegar ao fim dos seus dias a saber cantarolar canções inteiras para as enfermeiras do lar, pelo menos até que elas se cansem e nos mudem a medicação. Em segundo, certamente para a receita dos artistas, que não se limitaram a vender singles e continuam a fazer muito dinheiro também com os seus lados B. Em terceiro, porque todos tirávamos mais de cada canção.

Notem: não estou a dizer que, antes, é-que-era. Tenho a certeza de que o peeps lá em Viena, no século XIX, também dizia que este Beethoven e esses outros de agora, querem é fazer barulho para as massas, em vez de comporem para o baptizado da sobrinha do duque, como fazia o meu Amadeus (e mesmo esse já era a dar para o estouvado…). Em cada época, achamos que nós é que estamos certos e que a nossa música é que era boa; mas há uma coisa que talvez fosse objectivamente superior no tempo pré-internet: sabíamos que tínhamos de escolher. Porque temos sempre de escolher. Hoje, talvez tenhamos a ilusão do contrário, de que podemos levar tudo connosco, a todo o momento, ser tudo, dispor de tudo, mudar de ideias, voltar atrás, fazer tudo em-todo-o-lado-ao-mesmo-tempo. Mas isso confunde-se bastante com não ser nada. Ser a dúvida e indecisão eterna. As canções que escolhemos para ficarem na cassete formaram-nos tanto como as que escolhemos deixar de fora. Recortaram-nos a silhueta e a ansiedade. Tiraram-nos carga das costas. Ajudaram-nos a saber exactamente o que estávamos a perder – e a respeitá-lo por isso.

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Então, estávamos ali, sábado, edição 2024 de um dos mais agradáveis fenómenos do nosso tempo e que não havia na época do “Top Disco”: o festival de Verão, a pensar nestas coisas. Em como os Pearl Jam são os sobreviventes quase solitários da banda sonora de um tempo que viu morrer gente nos Nirvana, nos Soundgarden, nos Smashing Pumpkins, nos Stone Temple Pilots, nos Alice in Chains, gente de quase todos os posters que tínhamos nos quartos, e que, de uma maneira ou de outra, vinha de caminhos tortuosos, passou pela música e acabou em finais rápidos, violentos e sem respostas. Eddie Vedder e companheiros voltavam para o encore e distribuíam mensagens pacifistas, faziam uma versão de “Imagine” e diziam como era preciso que nos livrássemos “do cancro” na América. Nisto, o telemóvel vibrava-nos no bolso com mensagens e vídeos: tinham acabado de alvejar Donald Trump. A notícia ainda não tinha chegado ao palco ou a banda teria escolhido outras palavras. Seguia para nova versão, agora o “Rockin’ a Free World”, de Neil Young. De repente, ali mesmo atrás de nós, duas câmaras de televisão e dois seguranças criavam, muito discretamente, espaço para Marcelo Rebelo de Sousa sair pelo meio de uma multidão de 50 mil pessoas. Sorrimos: como é diferente ser Presidente em Portugal.

Mas talvez hoje a possibilidade permanente de aceder a toda a música do mundo, de graça ou quase, ofereça tantas mais vantagens do que o tempo da geração Adam Curry. Aos que não se contentam com a ditadura dos singles. Aos que garimpam lados B, mesmo em plataformas digitais que não têm corpo, quanto mais lados.

Os Pearl Jam sobreviveram. Neil Young sobreviveu. John Lennon era um pacifista e levou um tiro. Donald Trump promove as armas e incentiva à discórdia e levou um tiro. Mark Chapman acertou; Thomas Crooks não. Mark Chapman foi castigado com prisão por acertar; Crooks com a morte por falhar. Os Pearl Jam terminam o concerto com “Yellow Ledbetter”, que nunca foi single, nunca entrou num álbum, sequer. Foi apenas um lado B. Um lado B que muitos interpretam como uma canção sobre o irmão de um amigo que morreu na Guerra do Golfo. Um lado B que sobreviveu.

Talvez o mundo nunca melhore nem piore, seja mesmo sempre e só o eterno retorno de Nietzsche. Como um grande vinil a rodar no gira-discos de um deus melómano e ligeiramente perverso. Talvez devesse começar a aprender a dançar.