Pode parecer estranho que após ter escrito na semana passada que há hoje questões mais importantes do que a divisão entre a direita e a esquerda, escreva hoje um artigo a defender a direita e o liberalismo. Em primeiro lugar, como disse, a distinção não é irrelevante. Resolvi defender a direita liberal por um simples razão: tornou-se uma moda atacá-la. E, como se diz no nosso país, quem não sente não é filho de boa gente. Se atacam as ideias com as quais me identifico, acho que as devo defender.

Está na moda usar a “austeridade” do anterior governo para retirar legitimidade à direita e às ideias liberais. De resto hoje todos fogem da direita e do liberalismo. O PSD “regressou” à “social democracia”, e o CDS está a reencontrar as suas raízes democrata-cristãs. Entendo perfeitamente as estratégias do PSD e do CDS. O PS encostou-se à extrema-esquerda, abrindo espaço a que os partidos do centro-direita se deslocassem para o centro. Mas eu não sou membro de partidos e não faço política partidária, apenas discuto política no plano intelectual.

Um amigo meu de esquerda costuma dizer-me que quem é socialista sabe que o Guterres não é de esquerda. Do mesmo modo quem é liberal sabe muito bem que o governo de Passos Coelho e de Portas nunca foi liberal. Foi um governo de salvação nacional onde não havia margem para impor qualquer liberalismo, ou outra receita ideológica. Competia-lhe colocar as contas públicas em ordem, enviar a troika de volta para Bruxelas, Frankfurt e Washington, e colocar a economia a crescer. Conseguiu os três objectivos. E, na minha opinião, a determinação do anterior PM na execução do programa de austeridade não resultou de convicções ideológicas mas do conhecimento que tem do país. Sabia que sem um exemplo determinado de quem liderava não se conseguiria recuperar a soberania financeira. O anterior governo nunca foi ideológico. Foi simplesmente um governo de ação.

Por isso, quem é liberal não pode deixar que se ataque o liberalismo por causa de um governo que não foi liberal. Como é que um português de 50 anos se tornou liberal? Desde logo, não vivi no Estado Novo, por isso nunca identifiquei o socialismo com a liberdade. Eu cresci com outras ameaças à liberdade: o comunismo em Portugal e a União Soviética na Europa. O Salazar era um antigo líder morto e Marcelo Caetano um exilado. Nunca me senti ameaçado por eles. Pelo contrário, aprendi muito cedo que Álvaro Cunhal e os seus camaradas eram as ameaças à nossa liberdade e ao nosso bem-estar económico. E uma das pessoas que nos ensinou isso foi Mário Soares; não foi algum perigoso “neo-liberal.” O contexto politico do pós-25 de Abril fez da liberdade a questão mais importante de todas, e a extrema-esquerda (hoje aliada do PS) constituía a maior ameaça ao mais precioso dos bens politicos.

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No plano externo, a União Soviética representava a maior ameaça à liberdade dos europeus e dos ocidentais e cresci a assistir ao expansionismo soviético: na África portuguesa e na Ásia. A luta pela liberdade em Portugal era a continuação da luta pela liberdade no mundo. E os inimigos da liberdade era os mesmos.

Em grande medida, fui um privilegiado. Assisti à queda do totalitarismo soviético e à vitória da liberdade ao mesmo tempo que fazia a minha formação intelectual. Um dos livros que mais me marcou foi “As Origens do Totalitarismo” de Hannah Arendt; e lê-lo durante a queda do Império soviético teve ainda mais significado. Continuei a minha formação universitária, durante anos em Inglaterra, onde aprofundei o meu conhecimento sobre as tradições da liberdade. Mas curiosamente, os meus pensadores preferidos foram sempre os continentais, e não os britânicos. Senti-me sempre atraido por aqueles que pensavam a liberdade porque tinham também que lutar por ela; em Inglaterra era demasiado fácil ser liberal. Montesquieu em vez de Locke, Tocqueville em vez de Stuart Mill. E Weber e Aron em vez de Popper. As grandes excepções inglesas chamavam-se Isaiah Berlin (mas um inglês muito continental) e Michael Oakshott (que acrescentou uma costela de anarquismo conservador indispensável para manter um salutar cepticismo que tempera muita coisa, até as tentações para excessos liberais).

Além do pensamento liberal – e certamente mais importante – a história moderna mostra o significado das tradições liberais. Estiveram na primeira linha nas lutas que transformaram as sociedades europeias nas mais justas no mundo moderno: contra o obscurantismo religioso, o absolutismo monárquico, as ditaduras políticas, as desigualdades sociais e a servidão económica. Foram também as tradições liberais que lutaram pelo triunfo do estado de direito, pela consagração constitucional das liberdades, pelo respeito dos direitos humanos, pelo desenvolvimento económico e pela justiça social. Não foram certamente as tradições Marxistas e socialistas que alcançaram estes progressos politicos, económcos e sociais.

Aliás não é por acaso que os países mais desenvolvidos economicamente, com maior justiça social e com as mais fortes garantias jurídicas e institucionais para defesa das liberdades individuais são aqueles onde o liberalismo é mais forte. Não é uma opinião. É uma observação empírica. São os casos dos países escandinavos, da Holanda, do Reino Unido, da Irlanda, da Alemanha, do Canadá, da Austrália e da Nova Zelândia. E muitos destes países nem sequer têm partidos liberais fortes. É, de resto, mais importante que haja uma tradição liberal forte no interior dos principais partidos. O liberalismo é compatível com a social democracia, com a democracia cristã e com o conservadorismo. A inexistência de um partido liberal não é o problema português. O problema reside na fraqueza das tradições liberais no PS, no PSD e no CDS.

Passei, entretanto, por muitas experiências profissionais – políticas, burocráticas e com o sector financeiro. Aprendi que as referências ideológicas são apenas o ponto de partida e que acabam sempre temperadas pela realidade e pela necessidade de compromissos. Mas não me queixo. Numa sociedade pluralista, é assim que deve ser. Também sei muito bem que em nome da liberdade económica se cometeram grandes abusos e injustiças. Não tenho ilusões sobre a natureza humana, e ainda menos sobre o peso da condição humana. E não tenho qualquer dúvida que os liberais em Portugal são ainda em menor número que os portistas em Lisboa.

Mas também sei que uma sociedade com liberdade é uma obra permanentemente em construção. Deve ser permanentemente cuidada e com muita atenção. Como mostraram os últimos meses, há demasiados em Portugal preparados para atacar a liberdade, a tolerância e o direito a pensar de um modo independente. Há um ponto que as gerações acima dos 50 anos devem entender. Para as gerações pós-25 de Abril, as grandes ameaças às liberdades vieram das esquerdas e das correntes socialistas. Desde a União Soviética até às experiências radicais contemporâneas na América Latina e na Europa do sul. Em Portugal, essas tradições radicais e anti-liberais estão hoje no poder. Não faltará muito até o desrespeito pelas liberdades se tornar numa questão importante da política portuguesa. As esquerdas radicais nunca exercem o poder em vão. É por isso que as tradições liberais são mais importantes do que nunca.