O Estado de Emergência fechou-nos em casa, limitou-nos os movimentos e, em muitos casos, comprometeu até os nossos rendimentos. Mas se um decreto tolheu algumas das nossas liberdades, não impediu, nem em confinamento, o que John Stuart Mill considerava ser a primeira e mais importante liberdade: a liberdade de consciência no sentido mais lato, que compreende pensamento e sentimento e a sua inseparável consequência, a liberdade de expressão.

Ainda assim, o que a história nos ensina é que se as instituições políticas, sociais e económicas são fundamentais para preservar as liberdades, também não é possível viver em liberdade sem o espírito e a cultura da liberdade individual. O que este mês e meio de uma situação excecional revelou é que o primeiro risco para a liberdade de pensamento e de expressão vem sobretudo da ausência de cultura e de espírito democráticos.

Aqui ao lado, em Espanha, o Governo de Pedro Sanchez usou a crise para limitar a liberdade de expressão, quando nas conferências de imprensa sobre a situação sanitária, sem jornalistas presentes na sala para permitir o distanciamento social, começou a selecionar previamente apenas as perguntas às quais queria responder. Só recuou nesta estratégia quando a imprensa optou por boicotar as conferências de imprensa. Soube-se também, na semana passada, que a Guardia Civil começou uma operação de ciberpatrulha, para, nas palavras do Chefe de Estado Maior da Guardia Civil, “recolher notícias falsas suscetíveis de gerar descontentamento com o Governo”. Embora já tenham sido dadas explicações adicionais de que esta operação pretendia identificar casos de notícias falsas relacionados com a saúde que pudessem causar “alarme social” e não opiniões políticas, ainda assim, fica a dúvida sobre a quem cabe a decisão de determinar o que é uma notícia falsa, sobretudo num contexto em que se sabe tão pouco sobre este vírus e as suas consequências.

Até em Portugal, neste mês em que se celebra o início do processo que conduziu o País à aprovação de uma constituição democrática, há sinais preocupantes de ausência de cultura de liberdade.

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A liberdade de expressão poderá ser comprometida pela forma escolhida pelo Governo para apoiar a comunicação social, que em muitos casos se encontrava, já antes da crise, assolada por novos modelos de negócios com os quais não conseguia competir. Milton Friedman dizia que não é possível haver liberdade política sem liberdade económica, isto é, se não tivermos liberdade de nos sustentarmos não temos liberdade para nos opormos às decisões erradas dos Governos. Isto é especialmente verdade no caso da comunicação social. Poderá fazer imparcialmente o seu trabalho se depender financeiramente da intervenção financeira do Estado, como está previsto pela compra direta de publicidade institucional pelo Governo?

E sabe-se agora também que o grupo de Mário Ferreira, onde o principal consultor do primeiro ministro, Lacerda Machado, é administrador, entrou na fase de negociação exclusiva, até 15 de Maio, para a compra de mais de 30% do Grupo Media Capital, dona da TVI, de estações de rádio e de vários sites.

Enquanto o Presidente da Assembleia da República confunde a defesa da liberdade e da democracia com a defesa da formalidade de uma cerimónia específica no Parlamento, e à boleia desta confusão insinua que todos os que se opõem a estes moldes não são verdadeiros democratas, assiste-se em Portugal, quase sem ondas, ao crescente domínio do Governo sobre a comunicação social.

Perante estes riscos, uma oposição leal, responsável e que serve os cidadãos tem o dever de alertar e até, quando necessário, de se insurgir. Não para dificultar o trabalho do Governo, mas antes para o incentivar a encontrar o melhor caminho para sair de uma situação excecionalmente difícil. Quando as outras liberdades estão limitadas, mais do que nunca a palavra crítica, assente na liberdade de expressão, é que preserva a democracia.