1 Aterram sempre por esta altura Ninguém estranha, é verão. Há poucas “boas acções” tao previsíveis quanto a lista de livros “para ler nas férias” que nos é gratuitamente fornecida, todos os anos. Embirro um bocadinho talvez porque no meu caso não tenho mais predisposição para ler em Julho ou em Agosto (tenho-a sempre), nem mais tempo, por ser verão (com casas com mais gente que camas, ler é um número de circo).

Lembrei-me disto porque ando há um bom par de meses para recordar aqui algumas obras mas – ossos do ofício – só calhou agora. E é agora que deixo alguns livros sem estação: são livros de todas as estações. Escritos em português, o que me apraz fazer notar.

2 Quando aí pela vigésima ou trigésima página de um livro vou buscar o lápis, o gesto antecipa-me a possibilidade de uma “certeza” de que serei a ansiosa receptadora: a certeza do infindo prazer que será cavalgar, a passo, a trote, a galope ou mesmo á desfilada, sobre as palavras. A certeza dessa surpresa. E sob o ribombar desse trovão de emoções, há-de ficar a planar a última certeza: um livro é finito mas a sua memória ficará para sempre no tracejado do lápis avançando pelas páginas.

3 Deve ter sido quase logo de início que comecei a anotar o livro de Martim Sousa Tavares. “Falar Piano e Tocar Francês – Arte, cultura e humanismo na era dos memes” (Zigurate). A badana indica-nos que “a beleza está em todo lado“, que “é importante falar dela e não a perder de vista”, etc. Sim. Claro. Mas o que retive antes do mais (além da – indefinível? – natureza de que o autor é feito) foi a invulgaríssima maneira com que partilhou connosco o seu entendimento de “beleza”. E onde ela pode estar, e de que pode ser feita, e de como fazer para quando nos salta ao caminho, não a perder de vista, nem lhe perder o sentido. Martim regressou a lugares, ensinou-nos musica e contou-nos músicos, visitou museus, casou com Veneza, homenageou mestres, elaborou sobre maestros, escritores, pintores, ou uma receita de cozinha; estabeleceu improváveis paralelismos ou cruzamentos entre épocas, artes, criadores. Jamais esquecerei a sua maravilhosa “observação/explicação” do que pode levar um maestro a querer absolutamente reger de uma forma lentíssima, um determinado andamento de uma peça musical… Tão, tão, lentamente e num “arrastamento” tal, que um distraído julgará trata-se de um critério musicalmente errado ou de uma obsessão, quando afinal está diante de uma forma de transcendência, no modo como o mestre “lê” e dá a ouvir “aquele” andamento… (Eu diria que é uma prova da existência de Deus mas eu não toco piano, só falo francês.)

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Não há neste livro, uma continuidade de temas, nem uma cronologia, nem uma biografia, nem o mero relato de experiências e ocorrências. Há o Martim. E bocados da sua vida, sem ligação aparente mas unidos pelo modo como ele foi ter com eles, e eles consigo. E nesse sentido, o que retive foi o que de tão “especial” ,Martim Sousa Tavares fez de tudo isso e com tudo isso.

Sabíamos que era um músico abençoado, um criador, um divulgador de inesgotável imaginação e iniciativa. Talvez não soubéssemos que afinal possa simplesmente ser sobredotado.

4 Falei em bocados de vida e o que é um “Diário” senão um imenso puzzle de peças de uma vida? Tenho uma antiquíssima admiração por quem joga consigo mesmo esse xadrez e Marcello Mathias é um dos mais exímios praticantes dessa delicadíssima modalidade literária: ao escolher a peça na qual vai mexer: saber qual avançará, eleger a que quer quieta; decidir a que deve recuar; determinar qual a que retira do tabuleiro. Percepcionar o lugar de todas, uma aqui, outra ali, esta desiste, aquela resiste.

Há anos que leio estes Diários, que só nos largam quando, virando uma página, percebemos subitamente que é a última, não há mais páginas… Este chama-se “A Desoras – Diário, 2017-2023” (D. Quixote) e dizem-nos – será assim? – que será o último dos seus diários.

O jogador de xadrez percebendo como tudo é antes do mais derisório, talvez se tenha cansado. Há um momento em que a lucidez pode ser tão impiedosa, e a ausência de qualquer ilusão tão sombria, que se atinge um qualquer limite e o jogador de xadrez resolve entregar-se. Nunca saberemos se verdadeiramente decidiu fazê-lo nem o porquê desta rendição – as perigosas contas com o já vivido? O brumoso temor do que resta viver? O que podia ter sido e não foi? Esperar?

Nunca saberemos. (Ele saberá?)

5 Li estas “Desoras” num fôlego e – eu sabia – lá estava o patriota sem ilusões mas nunca se permitindo que a desilusão lhe pulverizasse o que ele sabe termos sido e termos feito. E também sabe como por essas incríveis lonjuras se contam ainda hoje marcas e marcos nossos – que só parecem manifestamente incomodar-nos a nós; e ainda sabe que nove séculos depois, cá estamos, os mesmos e dentro das mesmas fronteiras. Lá estava o cidadão culto, civilizado, de bom berço e acuidado critério, capaz de nos trazer – em dez linhas, três apontamentos, dois adjectivo ou trinta páginas – um ser humano inteiro. Lá estava o cosmopolita, reeditando o seu dom de pintar aguarelas sobre outras pátrias e povos, em tons ácidos, cores luminosas, ou tintas penumbrosas. E oferecendo-nos as memórias, os apontamentos, as histórias, as descobertas, as observações que colecionou nas diversas geografias onde serviu como diplomata – pertence à dinastia dos Mathias – ou por onde deambulou. Lá estava o captador de mentes e almas -ou deveria dizer mais apropriadamente um dos melhores intérpretes que conheço da natureza humana? Lá estava este homem arguto que nunca resistiu a atrelar ao humor que usa uma não despicienda quantidade de sarcasmo. Talvez porque o excesso de lucidez lhe vete humor mais afável, talvez por entender que o humor é algo de tão sério que dispensa afabilidades. E lá estava o escritor . Este que respira em permanência o mundo, a vida, a paisagem humana dentro ou fora das nossas acanhadas portas e depois as atira para o mar da escrita. Deixando que as palavras levem ás costas a realidade das coisas como as viu. Lá estava enfim o praticante de xadrez que só joga consigo próprio.

Um Marcello Mathias, que felizmente reencontrei igual a si mesmo -patriota, servidor publico, cosmopolita, culto, intransigente com o que merece a intransigência, observador, sarcástico. Mas sempre, sempre, antes do mais e de livro para livro, muito interessante. Mesmo que o tempo que passa – a que se costuma chamar idade, mas eu não chamo – se tenha interposto entre ele e nós. E por isso tenha coberto esta escrita com o véu de uma melancolia que costumava ser fininha mas hoje pesa no véu. Perceberão o que quero dizer na minha quando os convoquei para este português que vale a pena.

(Oportunamente voltarei aqui com a magnifica biografia de Lucas Pires da autoria de Nuno Gonçalo Poças, e com o extraordinário – depois explico – livro de crónicas de Guilherme Oliveira Martins, “A Cultura como Enigma”. Oportunamente, se bem se percebe é aqui um eufemismo: voltarei quando a casa com mais gente que camas me der autorização.) 

PS — Mesmo em Agosto, com os Jogos Olímpicos, as férias, o verão, o calor, os amigos, só não vê quem não quer. O quê? Este deprimente banzé que aí anda – e andará –, idealizado, produzido, realizado e interpretado por André Ventura. Já com o banzé em andamento e após alguns actos do premeditado teatro que tem sido a Comissão de Inquérito Parlamentar promovida pela Chega ao Presidente da República, começaram a ouvir-se felicitações a José Pedro Aguiar Branco porque (finalmente?) atrasou ou impediu que se viesse a entrar na maior devassa de que haveria memória em 50 anos. Ventura queria mais faenas, desta feita com WhatApp e tutti quanti – e amanhã o quê? Uma destituição do Chefe do Estado? Um assalto aos computadores do Palácio? A prisão de Nuno Rebelo de Sousa? Foi pena Aguiar Branco não se lembrar que tinha muito do seu lado para impedir – ou ter acautelado – a menorização do parlamento, a vergonha de alguns parlamentares, a desconfiança sarcástica do povo, o descrédito da política. Vai – agora? – pedir “pareceres” a uma secção da Procuradoria-Geral da República? E porque não um pedir um parecer a si mesmo, legitimado pela sua função e com a autoridade que lhe advém de segunda figura do Estado (e sereno conhecedor de homens e leis). Apesar de já aí estar o verão, as férias, a família reunida, novos projectos… conseguem deprimir-nos. (E já agora… a penosa pantomina da denominada última ceia, na inauguração dos Jogos Olímpicos, foi um bom contributo em deprimência: tão despropositado, tão desinteressante, tão grotesco. Mais patético que “inclusivo”, dificilmente terá convidado à prática da tolerância (e que confusão que aí anda com “tolerância” só para um lado…). Os dias não andam amáveis.