Até às declarações em Pequim sobre a invasão russa da Ucrânia, não prestei atenção nenhuma à notícia da ida de Lula à AR no dia das comemorações do 25 de Abril. Sem dúvida que o homem não se recomenda excessivamente e que a sua presença ali é divisiva, além de acentuar o papel da esquerda nas comemorações. Mas não foi mais ou menos sempre assim? E as pessoas não se habituaram a considerar isso normal, mesmo que não seja? Há mais coisas em que pensar.
O problema foram as declarações de Pequim. Lula referiu-se à Ucrânia e à Rússia como se não houvesse distinção entre agredido e agressor. E mais: acusou os Estados Unidos e a Europa de estarem por detrás da guerra. É verdade que, uns dias depois, com o presidente da Roménia, lá se permitiu criticar a invasão russa. Mas fê-lo sem o entusiasmo e a convicção das declarações de Pequim.
Estas eram, de resto, coerentes com as preferências políticas de Lula, grande admirador da Venezuela, da Nicarágua e de Cuba, todos regimes apoiantes de Putin. Mas que Lula seja adepto de uma “nova ordem mundial” oposta à das democracias liberais – e não apenas Lula como uma boa parte do PT, a começar pela sua presidente, Gleisi Hoffmann – é uma coisa. Apesar de tudo, ele está longe de ser o único “perfeito idiota latino-americano”, para citar o título de um livro célebre. Outra coisa diferente – e muito mais grave – é o grau de cegueira que lhe permite recusar o óbvio do óbvio: a distinção clara entre o agressor e o agredido, bebendo o cálice da propaganda russa até à última gota.
Foi esse aspecto que Paulo Rangel, pelo PSD, denunciou com as palavras certas e que a deputada socialista Jamila Madeira procurou branquear com o estapafúrdio argumento de que Lula visava apenas, como todos nós, a busca da paz. Como se a preocupação com a paz passasse pela obliteração da distinção entre agressor e agredido. Não passa, não pode passar.
Mais. Se se elimina a distinção, tudo daí se pode deduzir, sem controle algum. A desonestidade e a mentira pura e simples tornam-se a única moeda corrente. Todas as falsificações da história se tornam possíveis e tendencialmente inevitáveis. Nada pode servir como pedra-de-toque para a verdade.
Lula tem todo o direito a desejar uma nova ordem mundial, por mais terrivelmente nociva que ela seja para os habitantes deste bom velho planeta. Um direito que ele certamente não tem é o de destruir as distinções básicas sobre as quais assentam as nossas capacidades de emitir juízos políticos.
Tenciono ouvir o seu discurso na AR. E, desejando que ele não recaia nas barbaridades de Pequim, espero que, caso o faça, receba uma resposta com a devida firmeza por parte de alguns deputados, que lhe façam notar que a apologia do crime não é bem-vinda naquele lugar.