‘Uma mulher nunca é demasiado rica ou demasiado magra’ dizia Wallis Simpson, ela própria magricelas e com tendência para se apaixonar e casar com homens ricos. E que se tornou famosa numa década (anos 30 do século XX) cuja estética me agrada particularmente e que, no que toca aos objetos que nos protegem o corpo do frio e acomodam o pudor, promovia uma silhueta esguia e magra. As roupas de Mainbocher, Vionnet e Chanel não se destinavam a curvilíneas de índice de massa corporal elevado. Na exposição de fotografia que já aqui referi, as senhoras eram todas magras – mesmo para os padrões atuais – e os vestidos em tecido e linha que lá estavam expostos só admitiam cinturas viperinas.
(Lembro isto porque inevitavelmente achamos que é a primeira vez que tudo sucede em toda a história da humanidade – e até no período dos dinossauros – quando afinal não somos originais, apenas repetimos tendências e das vezes anteriores não se seguiu o fim do mundo como o conhecemos.)
Em todo o caso Wallis Simpson seria uma boa candidata para sofrer as penas da recente criação do legislador francês: uma lei que bane modelos excessivamente magras (com IMC abaixo de 18) e pune com multa de milhares de euros e pena de prisão até um ano quem promover a anorexia.
De França não vêm só roupas, queijos, perfumes, Monsieur Hulot e o Obelix. O país também nos habituou a produções mais questionáveis, desde a guilhotina aos anos dourados do exílio de Mário Soares, passando por Jean-Paul Belmondo. E agora esta legislação parece ser um interlúdio para habituar os franceses aos mimos da Frente Nacional. Afinal os extremistas políticos dos dois lados sempre apreciaram condicionar o corpo e a aparência femininos – a propaganda hitleriana difundia a sugestão imperativa de corpos saudáveis e com músculos habituados ao exercício, e de caras sem maquilhagem e maçãs do rosto naturalmente rosadas pelo ar livre.
Primeira parte de quem é abusada com a lei: as modelos. Deixando de lado as modelos cujo metabolismo as torna muito magras e que vão perder o emprego à conta do iluminado legislador francês, há que perguntar: desde quando os indivíduos não devem poder escolher hábitos de vida pouco saudáveis? Ficam doentes e usam os recursos dos sistemas de saúde públicos? Bom, pagaram (ou pagaram os pais) impostos para deles usufruírem.
Nesta sociedade obcecada com a saúde e a longevidade, e com estados que teimam em informar-nos como devemos viver (nos dias de calor do verão temos sempre notícias de algum solícito organismo público pedindo-nos para beber muita água e se faz favor passearmos pela sombra), é conveniente defendermos o direito individual aos hábitos pouco saudáveis. Desde que não ofendamos direitos de terceiros – perigar outras vidas ou a propriedade alheia conduzindo alcoolizados, por exemplo – qualquer pessoa deve ser livre de escolher escaqueirar a saúde.
Mas o que preocupa o legislador não são as modelos. Para isso bastaria endurecer leis de medicina no trabalho e determinar que as modelos anoréxicas procurassem tratamento e ficassem com baixa médica até recuperarem a saúde. E aqui chegamos ao segundo grupo abusado pela lei: aqueles que supostamente promovem a anorexia.
Não penso que incitações à violência, por exemplo, estejam no arco aceitável da liberdade de expressão. O imã que diz a um jovem impressionável que frequenta a sua mesquita ‘vai ali explodir-te em hora de ponta naquele autocarro de infiéis que terás virgens no paraíso’ ou ‘vai juntar-te ao ISIS na Síria e violar e escravizar as mulheres cristãs e yazidi e que Allah te acompanhe’ deve ser criminalmente responsabilizado pelo que aconselha. O anarcocomunista enrijecido que em comício defende a bondade dos atos dos anarcocomunistas pequeninos quando destroem os edifícios e os bens de empresas ou de empresários, idem.
No entanto parece-me que quem afirma ‘o meu ideal de beleza feminino é este [o de uma adolescente escanzelada]’ (quiçá necessitando de tratamento psicológico prolongado por gostos peculiares) ou ‘as roupas que eu desenho são exibidas melhor em modelos muito magras’ está uns tantos furos abaixo do treinador terrorista. Modelos magras incentivam à anorexia e isso é um perigo para as adolescentes? Muito bem: o estado que disponibilize a informação junto das adolescentes e dos pais e de resto respeite o livre arbítrio.
E vamos aplicar a regra a tudo? Fumar provoca doenças várias e cancro; queremos prisão para algum escritor de sucesso que invente para os seus livros uma personagem carismática que fume? Sexo casual desprotegido pode resultar em doenças mortais ou incuráveis; cela solitária para atores e realizadores que participem num filme onde ocorre um caso sexual de uma noite sem colocação de preservativo? Morre muita gente com cancro na pele; qualquer revista que ostente gente bronzeada terá os gendarmes e magistrados a persegui-la? E um quilométrico etc. Deveremos ser responsabilizados pelas más decisões conscientes de terceiros?
A magreza excessiva é feia, o que toma conta do assunto. Da única vez que fui à apresentação de coleção de uma designer nacional (há uns quinze anos) saí impressionada com a fealdade das pernas com ossos de joelhos tão salientes que pareciam de um famélico etíope. Por muito que gente lunática no mundo da moda promova isto, terá o mesmo sucesso que a Balenciaga há uns anos com as armações de seda rígida com que queria vestir senhoras desprevenidas: escasso. Prova: a modelo sensação de 2014 foi Kendall Jenner, uma morena exótica magra mas com curvas.
Os excessos fashionistas são como o comunismo: não resistem à realidade e ao bom senso. O legislador, mesmo francês, pode ocupar-se do magno problema seguinte.