Correndo o risco de adotar o estilo a que as participantes dos concursos de beleza nos acostumaram, dou por mim quase a desejar para 2019 ‘paz no mundo’. Quer dizer, claro que desejo paz no mundo (quem não?) mas o meu desejo é um tudo nada mais específico. Concretizo: para 2019, quero paz social. E, ao contrário da paz no mundo (que nunca existiu em ano nenhum desde que inventaram a humanidade), paz social é uma boa característica a que tenho estado habituada toda a minha vida. Sendo que vejo, pela primeira vez, muitas pessoas a desejarem ardentemente que tal preciosidade se evapore. E muitos mais que, não sendo tão explícitos, elogiam os arruaceiros, os desculpam, os contextualizam, não lhes apontam qualquer crítica de peso, enfim, que no fundo desejam que a desordem suceda para depois se lhes juntarem.

É inútil, por tão evidente, referir que a paz social e o contexto de estabilidade num país é um bem em si mesmo. Níveis baixos de conflitualidade são benéficos para uma comunidade. Pelo contrário, alta conflitualidade e contestação social significativa e agressiva têm custos elevados. Por um lado, para o bem-estar psicológico de cada indivíduo – por muito que o número de arruaceiros tenha crescido, a tendência humana é a de procurar e desejar ambientes tão harmoniosos quanto possível. Qualquer manual de psicologia detalha os efeitos psicológicos do conflito. Depressão, solidão, angústias. Os compêndios de sociologia das organizações ou de comportamento organizacional devotam largas páginas à necessidade de resolução de conflitos nas organizações. Fatores negativos como conflitos têm impacto psicológico daninho, enquanto as redes de suporte social impactam positivamente no bem-estar (veja-se por exemplo este meta-estudo de Karen D. Lincoln; ou este paper sobre estudantes universitários).

Por outro lado, conflitualidade social e contestação violenta tem também custos económicos. Gera incerteza e imprevisibilidade, o que extermina a vontade de qualquer um fazer investimento. Corrói a confiança, pelo que as negociações se tornam mais duras e reticentes e os negócios mais difíceis de obter. Famílias e empresas retardam decisões, engavetam projetos, arriscam menos. Stuart Diamond – que propõe modelos colaborativos – aqui estima que, em 2011 (e onde vai 2011?), a conflitualidade social poderia estar a custar a França 5% do PIB.

Há mais efeitos perniciosos. Politicamente a instabilidade cresce, as instituições degradam-se ou perdem credibilidade, os abusos potenciam-se. E gera-se um ciclo vicioso, reforçando o mau estar individual e a maleita económica, que por sua vez geram mais contestação e conflito social.

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Escrevo isto tudo por causa do país que ia parar com os coletes amarelos portugueses e que afinal não parou. Num sinal de sanidade, qualquer das concentrações em que estive nos últimos tempos – em protesto pela infame decisão do Tribunal da relação do Porto sobre os violadores de uma rapariga inconsciente numa discoteca e, no ano passado, em frente ao Palácio de Belém e no Terreiro do Paço por causa das mortes nos fogos florestais – teve bastante mais gente.

Porém nada garante que não haja um grande ajuntamento amarelado. Tenho alguma confiança na bonomia portuguesa. Claro que se adora a bazófia do facebook, ou a transfiguração em psicopata no twitter, as alucinações via whatsapp, no entanto os rendimentos por cá são escassos, a economia periclitante, toda a gente tem muito a perder se de súbito o caos se instalar. Por isto mesmo houve tanta resignação durante o período da troika – porque acima de tudo ninguém queria um segundo resgate com condições ainda mais draconianas. Num ambiente de crescimento económico e de descida de desemprego, mesmo com muitos sinais encarnados para o médio e longo prazo, seria estranho que o país se tornasse suicidário e deitasse tudo a perder.

Em todo o caso, não é de todo impossível que ocorram protestos. Mesmo se pequenos, meia dúzia de híper motivados podem provocar acidentes graves, vandalizar propriedade, emaranhar-se violentamente com a polícia. As políticas que se seguem também propiciarão mais ou menos contestação. Pelos dados apresentados neste artigo da The Economist, corte de apoios sociais (que é visto como um menor esforço de redistribuição) e grandes níveis de desigualdade são potenciadores de conflito social.

Os populismos, como se percebe, vivem dos ressentimentos e, para manter o poder, aprofundam os ressentimentos. Quem tem ido aos Estados Unidos (e agora ao Brasil) conta-me de ambientes de tensão antes inexistente. Na Hungria os protestos são por estes dias contra Orbán. Em França tanto a extrema esquerda como a extrema direita fazem render o ódio.

A retórica e a atuação de Trump têm custos que vão para além das perdas eleitorais dos republicanos. A imprevisibilidade e incerteza que o estilo negocial truculento com a China, Canadá e União Europeia tem tido custos significativos na economia mundial, visíveis numa série de indicadores voláteis que deveriam estar crescentes com estabilidade na conjuntura de crescimento atual. Os insultos, os tweets alucinados, os ataques desenfreados degradam e descredibilizam a presidência, por muito que se agrade à fiel base adepta da boçalidade. O shut down do governo por causa do financiamento do muro (olha, afinal não é o México que vai pagar). As ameaças de despedir o presidente da Federal Reserve por aumentar as taxas de juro. Manifestações de nazis, com mortos, que não são condenadas. O resultado, apesar do crescimento económico, é um nível de infelicidade recorde dos americanos.

A boa notícia é que podemos todos – daí o meu pedido inicial de paz no mundo em geral e paz social no particular – potencial ambientes sadios, em vez de promover produtos ideológicos malsãos. Podemos prometer violência – ou defender ideias que geram ressentimentos e divisões. Ou podemos exigir moderação e capacidade de consenso. Neste momento temos a responsabilidade de escolher.