Já está a acontecer: Luís Montenegro bem tenta falar de mais um escândalo do poder socialista, mas a imprensa só o quer ouvir sobre uma coisa: admite ou não acordo de governo com o Chega? É uma questão sem resposta certa: se é não, como espera então governar, à vista das sondagens?; se é sim, aceita portanto a demagogia do Chega sobre a criminalidade ou a imigração?
Há que reconhecê-lo: o poder socialista está em vias de dar mais um nó na política portuguesa. O primeiro nó já o deu há uns anos, quando convenceu o funcionalismo público e os pensionistas de que “reformas estruturais” significavam simplesmente cortes de salários e pensões, e desmantelamento dos serviços públicos. Mas esse é um nó que pode ser desfeito, não só por uma direita mais persuasiva, mas por uma eventual impaciência do país com o declínio, e o empobrecimento. Sabe-se lá se, um dia, idosos e funcionários não acabarão por dizer: o “neo-liberalismo” não pode ser pior do que isto, vamos experimentar. Convinha, portanto, dar mais um nó.
O segundo nó aproveitou a nova arrumação da direita. Nacionalistas e liberais, misturados durante anos no PSD e CDS, autonomizaram-se através do Chega e da IL. Dois novos partidos, sem tradição de alianças e famintos de votos, nunca seriam interlocutores fáceis para o PSD. Mas o poder socialista complicou mais as coisas: estigmatizou-os (“racistas”, “queques que guincham”), ao mesmo tempo que os pôs no centro de todas as conversas. O cálculo socialista não é apenas fabricar mais papões para assustar o povo. Trata-se de permitir à oposição interna no PSD atrapalhar os líderes com exigências moralistas de “linhas vermelhas”, até toda a gente se convencer de que, mesmo em maioria, a direita nunca será capaz de substituir o poder socialista. O que limitaria qualquer dinâmica de alternância.
Como se desfaz este nó? Cortando-o, como Alexandre. À liderança do PSD, convirá esclarecer três coisas. Primeiro, que nunca aceitará governar com o PS ou dependente do apoio do PS: o PSD é a oposição e a alternativa ao PS; segundo, que nunca será por falta de esforço do PSD que deixará de haver um novo governo, se a direita estiver em maioria: poderá entrar nesse governo e na sua maioria parlamentar, proporcionalmente, quem para isso tiver votos dos portugueses; terceiro, que há “linhas vermelhas”, mas que elas se aplicam às políticas, e não aos partidos, segundo o método seguido em 2015 para formar a “geringonça”, quando o Presidente da República exigiu a António Costa garantias sobre a integração portuguesa na UE e na NATO. O PCP e o BE não tiveram de “moderar-se”, mas ficou claro que a governação não se alteraria nessa matéria estruturante. No caso da direita, tratar-se-ia de assegurar que, com uma maioria dirigida pelo PSD, nunca haveria aventuras liberais à Liz Truss, nem legislação dirigida contra qualquer grupo de cidadãos ou residentes em Portugal. Isso dispensaria o PSD de esperar, como no tempo de Rui Rio, que o Chega deixe de ser demagógico ou que a IL deixe de ser sectária. Simplesmente, essa demagogia e esse sectarismo não contariam para a governação.
Não se trata de salvar a direita. Trata-se de salvar o regime, garantindo que existem nele meios para uma alternância no governo. A alternância é a higiene da democracia. O maior de todos os riscos é os cidadãos ficarem crescentemente frustrados e enojados com o imobilismo e a corrupção do poder socialista, e a oposição não ser capaz, por mais votos que tenha, de tirar aos socialistas o governo ou a influência no governo. Muita coisa começaria então a cheirar demasiado mal.