1. Mais um ano findo. E mais uma Legislatura quase finda. Então… e a tal reforma do Estado? Afinal, a este respeito e definitivamente, já não estamos em «crise»? Chegámos ao fim da história do Estado? Enquanto a actual maioria parlamentar não cessa de fazer reformas ideológicas para aumentar os monopólios do Estado social e a enorme Administração Pública correspondente?

2. Parafraseando um dos maiores constitucionalistas europeus do nosso tempo, emérito professor de Direito e membro do Tribunal Constitucional alemão, de seu nome Ernst-Wolfgang Böckenförde, é inquestionavelmente acertado afirmar que o típico Estado-providência-burocrático, que sobretudo partidos socialistas sul-europeus defendem e têm vindo a implementar, vive de pressupostos éticos que ele próprio, Estado-providência-burocrático, na prática contradiz. Porque, em suma: o bem que idealmente esses partidos socialistas (que se dizem não sociais-democratas, como todos os nossos partidos socialistas, incluindo o “Partido Socialista”) dizem prosseguir é o de satisfazer os direitos sociais fundamentais, cuja finalidade é dar condições de efectividade ao gozo e exercício dos direitos fundamentais de liberdade e realização pessoal dos cidadãos. Mas, na prática, subordinam esse desígnio social à falsa precedência de um monopólio estadual de prestação de serviços, que assim combate deslealmente a iniciativa privada que produz os mesmos serviços, aliás no exercício constitucional de direitos fundamentais de liberdade, que, estes sim, são precedentes do Estado e portanto da função estadual.

3. O Estado-poder-político, que se caracteriza como uma instância de poder físico constritivo irresistível de governo sobre os cidadãos e a Sociedade Civil, distinta «da» e «na» Sociedade Civil (na definição de sociólogos, como Max Weber, e antropólogos sociais, como Pierre Clastres), justifica-se (filosófica e juridicamente) na medida em que é indispensável garantia da segurança e da justiça públicas. Isto é, na medida em que se lhe atribui o exercício de poderes públicos de soberania que, por definição, os cidadãos não podem (e não devem) exercer directamente. Nem a segurança pública, nem a justiça pública podem ser prestadas privadamente pelos cidadãos. Mas, para além desta função, ou seja, para a (terceira) função complementar de melhorar o bem-estar dos cidadãos na vida social, o poder de Estado só se justifica como instância de função subsidiária, que portanto não pode ser exercida em monopólio do poder soberano.

4. O bem-estar dos cidadãos é radicalmente obra do exercício pessoal dos seus direitos e deveres fundamentais de liberdade e de realização pessoal. O homem é um ser livre; e o poder político não pode querer libertá-lo combatendo a sua liberdade pessoal de iniciativa. Só pode ser genuinamente libertado nas suas dificuldades materiais e sociais se for em subsídio da sua pessoal liberdade de escolha. Esta é a pedra de toque da dignidade da pessoa humana: de uma concepção personalista, não estatista, da vida humana social; e portanto é a pedra de toque de uma democracia pluralista segundo o moderno constitucionalismo. Nesta concepção, a ideia moderna de Estado Social é boa, defensável e legítima: não como um acrescento quantitativo de Estado Soberano, e sim apenas como um suplemento qualitativo de Estado subsidiário.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

5. O que, porém, os vários partidos jacobinos têm vindo a fazer é maximizar um tipo de Estado social centralista e burocrático. Dizem prosseguir a satisfação de direitos dos cidadãos; mas o que visam é maximizar a sua dependência passiva em benefício da maximização da função estadual de alimentar essa dependência, em regime de monopólio. É por isso que identificam o bem estar dos cidadãos com o chamado Estado Social, isto é, com os monopólios públicos estaduais de prestações sociais gratuitas, como designadamente o ensino escolar, os cuidados de saúde e a acção social.

6. E não é por acaso que a insistência nos monopólios públicos prestativos do Estado Social visa prioritariamente estes três sectores de actividade. É porque estes foram, desde há muitos séculos, como no caso da rede de escolas da Igreja e da rede de misericórdias e hospitais sustentadas pela Igreja e pela Sociedade Civil, grandes instituições da Sociedade Civil. O nosso actual jacobinismo de Estado não se preocupa tanto em prestar directamente e em regime de monopólio estadual, por exemplo, o pão ou a habitação, que são tão importantes como a educação escolar, enquanto direitos humanos. Preocupa-se, sim, com aqueles sectores onde a sociedade civil é mais activa e portanto influente na vida social. O que o Estado social jacobino quer é que a Sociedade Civil seja relativamente passiva perante o seu maior protagonismo.

7.  Compare-se, por exemplo. O Estado centralista não oferece gratuitamente a todos a justiça pública, que é monopólio seu. Só os pobres gozam de gratuitidade no acesso aos serviços de justiça pública. Mas oferece a todos gratuitamente, a ricos e pobres, o ensino e os manuais escolares, se for em escolas suas estaduais, não nas escolas privadas. Obviamente, na justiça pública não precisa de atrair clientela; mas no ensino escolar precisa de combater a concorrência das escolas privadas.

Outro exemplo. Só o Estado pode exercer a função da segurança pública. Mas a verdade é que, de facto, cada vez mais o Estado externaliza esta função. Actualmente, o sector da chamada segurança privada, enquanto sucedâneo da segurança pública, é enormíssimo; e ainda por cima paga impostos. Porquê? Porque aqui o Estado não sofre uma concorrência na sua influência social-política. Se sofresse, não o permitiria, ou só o permitiria mau grado seu, como se tem comprovado recentemente com a querela contra os bombeiros voluntários.

8. Em suma: é mais do que evidente que a ideologia do Estado Social jacobino dos nossos dias está centrada numa luta do Estado contra a Sociedade Civil — que vem comprovar a tese do eminente antropólogo social Pierre Clastres, desenvolvida num precioso livro (finalmente traduzido para português) com o título «A sociedade civil contra o Estado» — que interpreta a sabedoria das sociedades primitivas, que temiam e rejeitavam o surgimento de um poder político de governo constritivo. Pelos vistos, e à luz da história dos infindos abusos e opressões do Estado, com toda a razão.

9. Para os ideólogos do moderno Estado social burocrático, os serviços sociais são bons, se forem prestados em instituições estaduais; mas, em instituições privadas, mesmo que de qualidade excelente e de melhor economia, são dogmaticamente maus, porque são concorrentes (inimigos) do Estado social. Foi exactamente nestes termos (invocando a concorrência dos privados) que o «pai» do Serviço Nacional de Saúde lançou, em Coimbra, a ideia de uma nova lei deste Serviço, actualmente em discussão na Assembleia da República. Foi expressamente para defender os serviços estaduais (ditos públicos) de saúde, da «concorrência» (aliás mais do que leal) dos serviços ditos privados. Literalmente: o Estado contra a Sociedade Civil.

10. A nossa Constituição, quando no artigo 9.º estabelece quais são as «tarefas fundamentais do Estado», diz assim, textualmente. Em primeiro lugar, na primeira alínea, «garantir a independência nacional»; isto é, a soberania nacional. Imediatamente a seguir, na segunda alínea, «garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de Direito Democrático». Depois, diz: ««defender a democracia política e incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais». E só em quarto lugar, numa quarta alínea, diz: «promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais».

11. Será necessário chamar a atenção da nossa opinião pública cidadã e mediática para o facto de, neste artigo constitucional verdadeiramente estruturante das funções do Estado, a «promoção do Estado Social» vir apenas em quanto lugar, depois de três primeiras alíneas em que se exige que o Estado «garanta» o Estado de Direito Democrático e a democracia pluralista e participativa? E participativa, repita-se. Será necessário chamar a atenção, não apenas para essa evidente ordem de precedência das várias tarefas, mas ainda para o facto de a Constituição usar, para as primeiras funções de soberania, os verbos «garantir» e «defender»; enquanto que, para a função de bem-estar, escolheu o verbo «promover»? Não é bem diferente: garantir ou só promover? Promover significa que, aquele que promove, supõe e apoia a acção de outros.

12. Se a luta do Estado centralista contra a Sociedade Civil é, afinal, a bandeira que actualmente em Portugal une a chamada esquerda política socialista, mormente nas políticas públicas da educação escolar e da saúde pública, mas não só (com a óbvia e inevitável consequência da redução das liberdades de escolha dos cidadãos e do aumento do despesismo do Estado social burocrático e da carga fiscal correspondente), podem aqueles que defendem a democracia (liberal e social) pluralista em Estado de Direito Democrático não levantar também a sua outra bandeira de oposição?

13. Não se trata de combater o Estado Social, enquanto «promotor» (é a palavra constitucional) do bem-estar; trata-se de combater o jacobinismo de Estado Social. Distinga-se, com toda a força: no exercício e poderes de soberania, o Estado é monopolista (embora sempre democrático); mas no exercício da função de bem-estar, o Estado é apenas subsidiário, promotor. Não são as instituições da Sociedade Civil que exercem um papel supletivo; é o Estado que exerce um papel supletivo. E há que distinguir bem entre a devida promoção ou provisão financeira, que compete ao Estado porque só ele cobra impostos, e a efectiva prestação de serviços — que, para serem gratuitos ou quase gratuitos para os cidadãos, têm obviamente de ser custeados pelo Estado com o dinheiro dos cidadãos contribuintes.

14. Na Constituição Política da República Portuguesa, nem um Serviço nacional de educação nem um Serviço nacional de saúde estão previstos como monopólios de Estado, que vêem na iniciativa privada uma concorrência a combater ou pelo menos a discriminar. Pelo contrário, em ambos os casos se consagram expressamente as formas empresariais e privadas das prestações de serviços que os integram, e que o Estado, já o vimos, deve promover. As respectivas Leis de bases confirmam esta interpretação de articulação de iniciativas do Estado e da Sociedade Civil. Na lei de bases da saúde, lê-se: «A promoção e a defesa da saúde pública são efectuadas através da actividade do Estado e de outros entes públicos, podendo as organizações da sociedade civil ser associadas àquela actividade. Os cuidados de saúde são prestados por serviços e estabelecimentos do Estado ou, sob fiscalização deste, por outros entes públicos ou por entidades privadas, sem ou com fins lucrativos.». A lei de bases do sistema educativo educação diz: «O sistema educativo é o conjunto de meios pelo qual se concretiza o direito à educação, que se exprime pela garantia de uma permanente acção formativa orientada para favorecer o desenvolvimento global da personalidade, o progresso social e a democratização da sociedade. O sistema educativo desenvolve-se segundo um conjunto organizado de estruturas e de acções diversificadas, por iniciativa e sob responsabilidade de diferentes instituições e entidades públicas, particulares e cooperativas. O sistema educativo tem por âmbito geográfico a totalidade do território português – continente e Regiões Autónomas -, mas deve ter uma expressão suficientemente flexível e diversificada […]. A coordenação da política relativa ao sistema educativo, independentemente das instituições que o compõem, incumbe a um ministério especialmente vocacionado para o efeito.»

15. Em suma e conclusão. Cumprir com rigor este programa constitucional é o que politicamente está em causa, entre nós portugueses, por estes dias. E isto implica uma questão de forma/reforma do Estado, no espírito e no quadro constitucionais da democracia pluralista, baseada na dignidade da pessoa humana e suas liberdades fundamentais; não é apenas questão de políticas públicas sectoriais, de dimensão partidária.