Quando tudo se parece jogar num acontecimento particular – por estes dias, a guerra na Ucrânia – é difícil escrever sobre outras matérias. Mas com a situação no terreno num impasse que só poderá ser resolvido caso o Ocidente democrático aumente o auxílio em armamento pesado aos ucranianos, convém buscar outras coisas que ocupem o espírito. Um assunto óbvio é a eleição de Luís Montenegro para a chefia do PSD. Com efeito, depois destes anos todos em que o PSD andou mergulhado numa versão política da chamada disforia de género, com a descoberta por Rui Rio que se tratava de um partido impecavelmente de esquerda, algo que o corpo da agremiação, como o atestam os resultados eleitorais, acolheu mal, a mudança é bem-vinda. O problema é que ainda é demasiado cedo para conceber verdadeiramente o que se vai passar e não há vantagem previsível, para quem não tem grande imaginação no capítulo, na mera especulação.
A guerra da Ucrânia permite, no entanto, algumas considerações gerais sobre o modo como certas maneiras de pensar se revelam inadequadas quando são transportadas de um objecto para outro objecto diferente, algo que Aristóteles já há muito havia perfeitamente percebido. Tomemos o exemplo clássico do caso, sempre muito elucidativo, do cientista que fala de política. Seria de esperar que a racionalidade que supostamente usa na sua actividade profissional funcionasse às mil maravilhas quando discorre sobre a sociedade e os conflitos internacionais. Ora, é muito instrutivo verificar que isso só muito raramente acontece. O mais das vezes, verifica-se exactamente o contrário: a sua maneira de pensar mostra-se por inteiro desadaptada ao novo objecto do seu interesse, resultando daí que as suas análises e propostas se revelam radicalmente inapropriadas para resolver o mínimo problema que a esfera política lhe coloca.
Se pensarmos bem, podemos descobrir várias razões para que assim seja. Uma delas é quase óbvia. A ciência busca a simplicidade nas hipóteses que formula. Se percorrermos a lista dos requisitos das boas hipóteses científicas que a história das ciências nos legou, tanto sob a pena dos filósofos da ciência como dos próprios cientistas, encontramos invariavelmente entre os requisitos principais (a par, entre outros, da fecundidade explicativa) o requisito da simplicidade, normalmente associado aos da inteligibilidade, da elegância e da beleza. Se há progresso no interior das teorias, ele deve-se muitas vezes a revisões que assentam num aumento da exigência de simplicidade. Acontece, no entanto, que essa excelente exigência não surte o efeito desejado quando aplicada aos fenómenos sociais e políticos, por razões que convém chamar ontológicas. O modo de ser da natureza é distinto do modo de ser da sociedade, os seus respectivos objectos não podem ser determinados de idêntica maneira. E, por essa razão, o que é um mérito num caso é um demérito no outro. A simplicidade tende quase inevitavelmente a transformar-se em simplismo.
Querem um exemplo? Haverá hipótese mais simples e aparentemente dotada do poder de tudo explicar do que aquela que atribui a uma única entidade o monopólio da causalidade política no mundo humano? Tudo passa imediatamente a fazer sentido, que é o que qualquer pessoa quer, até porque relativiza de um modo quase mágico o sem-sentido com que somos, no nosso dia-a-dia, obrigados a conviver. Peguemos numa proposição muito corrente: tudo o que corre mal neste nosso planeta deve-se à acção omnipotente do “imperialismo americano”. O corolário natural dessa afirmação é que todas as restantes entidades políticas se limitam a uma passividade essencial, exceptuando parcialmente aquelas que se colocam na posição de servir o dito “imperialismo”, assim recebendo uma espécie de actividade vicária. Como é bom de ver, só a actividade é susceptível de engendrar a culpa – a passividade designa, quase por definição, a inocência. Eis uma bela teoria, de uma simplicidade ímpar, cujo único defeito é o não capturar minimamente as condições reais das relações políticas, nacionais ou internacionais.
E, no entanto, ela goza de um grande prestígio, até porque, mesmo quando se reivindica do simples “bom senso”, sem se atribuir pergaminhos científicos, aparentemente é conforme ao projecto da ciência: descobrir a estrutura profunda que subjaz à estrutura da superfície e que por inteiro a determina. Assim, o mundo superficialmente aparece como um lugar de oposições várias em que cada entidade procura afirmar, a partir da sua perspectiva própria, a sua existência, preferencialmente de forma não violenta. Que sucesso explicativo não representa descobrir que, no plano da estrutura profunda, uma única entidade é, de facto, determinante! A lei da causalidade única, no plano da estrutura profunda, oferece a chave que, simultaneamente, explica e desmistifica o reino da aparência e, com tal desmistificação, abole a importância do contexto e da contingência, puros efeitos de superfície.
Pelo caminho, dissolve-se tudo aquilo que faz parte do elemento imaginário que efectivamente caracteriza o que há de específico a cada sociedade. O cientista que lida com a sociedade segundo os bons procedimentos das ciências da natureza descura quase por obrigação tudo aquilo que está na origem da maneira de ser própria de cada sociedade: as regras, os costumes, o significado das instituições, as próprias necessidades que para si inventam, as maneiras que criam para fazerem sentido do mundo. Tudo isso lhe parece excedentário e irrelevante, isto é, eliminável pela boa explicação. E fá-lo sem se dar conta que deita fora o bebé com a água do banho. A diferença entre os astecas e os vitorianos quase desaparece num ápice. E, com ela, quase inevitavelmente, a própria história.
Dir-se-á que todo este processo que nos conduz da simplificação científica ao simplismo político é afim daquele que observamos nas vulgares teorias conspiratórias. E é, de facto, afim. O princípio da causalidade única, bem como a explicação do visível pelo invisível, estabelecem um forte traço de união entre as duas atitudes. É o mesmo tipo de satisfação do espírito que é buscada: a descoberta de um sentido pleno e sem falhas. Tal é o resultado mais aparente da busca científica da simplicidade quando ela se metamorfoseia em simplismo político. Enquanto que, em ciência, a eficácia da simplificação pode ser testada e corrigida, em política o arbitrário, aureolado pelo prestígio da “ciência”, pode singrar de modo incorrigível e persuadir multidões alegremente incautas.
Estou muito longe de afirmar que o que escrevi atrás valha para todos aqueles que se dedicam à ciência – o que seria absurdo. Limito-me a constatar que se trata de um fenómeno mais vulgar do que seria desejável. E que ele radica na convicção errónea de que um único estilo de racionalidade, uma única maneira de pensar, vale identicamente para todos os objectos. Não vale. Objectos diferentes obrigam-nos a pensar diferentemente. Não se pode transportar, sem risco de violação da verdadeira inteligibilidade, a maneira de pensar a natureza para a maneira de pensar a sociedade.