1. Há momentos em que a Justiça honra e contribui ativamente para a credibilidade do Estado. A corajosa sentença da Operação Fizz conhecida esta 6.ª feira é definitivamente um desses momentos. Não propriamente pela pena de seis anos e oito meses de prisão efetiva para o procurador Orlando Figueira pelos crimes de corrupção passiva, branqueamento e de capitais e falsificação de documento mas por ter decretado uma verdade que as mais altas instâncias políticas do país, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e o primeiro-ministro António Costa, queriam ver escondida a sete chaves: o ex-vice-presidente angolano Manuel Vicente subornou um procurador português para que este, a troco de 763 mil euros e um emprego no Grupo BCP, arquivasse dois inquéritos criminais que corriam contra si no Departamento Central de Investigação e Ação Penal.
Marcelo e Costa, que tanto quiseram que acusação de corrupção contra Manuel Vicente fosse enviada para Angola, são os grandes derrotados da sentença que condenou Orlando Figueira e o advogado Paulo Blanco. As 435 vezes em que o nome de Vicente é escrito na sentença da Operação Fizz são a prova disso mesmo.
Por isso, há uma conclusão óbvia a retirar da sentença do coletivo do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa:
- se o ex-presidente da Sonangol não tivesse recusado ser ouvido e notificado da acusação do Ministério Público e se os factos relativos a Manuel Vicente não tivessem sido separados e enviados para Angola, Vicente teria sido condenado por um tribunal português a uma pena de prisão pelo crime de corrupção ativa de um magistrado do Ministério Público.
Não podemos ter grande contenção crítica porque o que está aqui em causa é a definição de qualquer Democracia ou Estado de Direito. Todos somos iguais perante a lei — e nenhum poderoso, seja ele nacional ou estrangeiro, tem mais direitos do que os restantes cidadãos perante o escrutínio da Justiça.
Do ponto de vista prático, foi precisamente isso que António Costa colocou em causa ao classificar de forma leviana a legítima atuação da Justiça portuguesa como “irritante” — no que foi seguido mais tarde por Marcelo.
Ambos misturaram planos que são constitucionalmente separados. E por muito que dissessem que não, Marcelo e Costa não fizeram outra coisa entre novembro de 2017 (pontapé de saída a cargo do primeiro-ministro) e 10 de maio de 2018 (altura em que o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu separar os processos) senão pressionarem publicamente os tribunais ao falarem constantemente da questão como um entrave às relações diplomáticas entre os dois países — numa cedência sem paralelo às pressões desrespeitosas do presidente João Lourenço sobre a Justiça e o Estado português.
Por tudo isto, temos de concluir que as procuradoras Inês Bonina e Patricia Barão (responsáveis pela investigação do DCIAP), apoiadas pelo seu diretor Amadeu Guerra, e o coletivo liderado pelo juiz Alfredo Costa demonstraram ter mais coragem, honestidade e coluna vertebral na Operação Fizz do que o Chefe de Estado e o primeiro-ministro perante João Lourenço e o regime angolano.
Subjugar os nossos valores civilizacionais aos pés de uma cleptocracia corrupta não pode ser uma opção para Portugal. Mesmo que a mesma seja de um país amigo como Angola.
Não é uma questão de raça, de nacionalidade, de cultura ou até de geografia. É uma questão de decência, de honestidade e de viver a vida de acordo com regras universais. E uma delas é simples: não tentarás corromper para retirar vantagens ilegítimas ou impedir o cumprimento da lei, mesmo que sejas prejudicado por isso.
2. A sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa também demonstra que, ao contrário do que a Relação de Lisboa decidiu pelas penas dos desembargadores Claúdio Ximenes e Manuel Almeida Cabral, o envio do processo de Manuel Vicente para Angola não obedeceu ao princípio e à necessidade da boa administração da Justiça — uma das bases essenciais para a transmissão dos autos. Como Ricardo Sá Fernandes explicou aqui.
Por outro lado, desde que os autos seguiram para Luanda, nunca mais se soube nada. O inefável Jornal de Angola e os seguidores do novo poder liderado por João Lourenço dirão certamente com a sua habitual retórica nacionalista pan-africana que em Angola respeita-se o segredo de justiça. A intenção do novo presidente também é óbvia: esconder as suspeitas que ficaram agora provadas em Lisboa sobre Manuel Vicente. Como se dizia em Portugal há 30 anos, promover um ‘arquivamento de gaveta’. É que quando ninguém sabe onde ‘está o papel’, tudo se torna mais fácil. É como aquele ‘boneco’ do Ricardo Araújo Pereira: “papel? Qual papel, pá?!”.
3. Do já famoso combate de João Lourenço contra a corrupção pouco mais se viu do que a prisão do filho de José Eduardo dos Santos por alegadamente ser responsável por uma transferência alegadamente ilícita de 500 milhões que terão sido desviados do Fundo Soberano de Angola, da detenção e investigação de outras figuras menores e da retórica (colorida, é certo, mas vazia) contra José Eduardo dos Santos e o saque do seu Governo.
Pior: João Lourenço ainda pouco ou nada fez sobre as imensas fortunas ‘conquistadas’ por inúmeros titulares de cargos políticos e militares angolanos por via do desvio de gigantesco desvio de fundos públicos angolanos nos últimos 30 anos. Daí a ajuda que pediu a Portugal aquando da sua visita.
Se João Lourenço quer realmente combater a corrupção, aqui ficam duas simples sugestões:
- Investigue a fundo quem foram os titulares de cargos políticos angolanos que receberam a maioria dos créditos de mais de 6 mil milhões de euros que o Banco Espírito Santo Angola liderado por Álvaro Sobrinho concedeu entre 2009 e 2013 e se existe alguma coincidência com a estrutura acionista que era liderada pelos generais Hélder Vieira Dias ‘Kopelipa’ e Leopoldino Nascimento ‘Dino’ — as caras do poder militar e dos serviços de informações que seguraram José Eduardo dos Santos até ao final. Aqui, sim, pode acionar os mecanismos de cooperação judiciária previstos no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa para pedir ajuda à Justiça portuguesa.
- Porque tem poder nesse sentido que lhe é conferido pela lei angolana, faça com que os factos contra Manuel Vicente reunidos na Operação Fizz sejam devidamente julgados em Angola. E que a gestão de Vicente na Sonangol seja devidamente escrutinada, tal como a de Isabel dos Santos tem sido (de forma fundamentada, refira-se). É que foi durante a gestão de Manuel Vicente que terão desaparecido 25 mil milhões de euros das contas da Sonangol, de acordo com relatórios do Fundo Monetário Internacional e da ONG Humans Wright Watch. Com mais esta, ficam 25.000.000.001 boas razões para investigar Manuel Vicente.
Isto, claro, se a luta contra a corrupção é mesmo para ser levada a sério — e se o verdadeiro objetivo não for a substituição de uma clique por outra.
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