1 Conheço-o bem (mesmo que seja impossível dizer isto de alguém sem tremer de ousadia). Mas conheço. Aprecio-lhe as qualidades humanas, a proximidade, a atenção ao outro. Sei do que é capaz em matéria de genuíno cuidado, testemunho há muito a permanente generosidade para a qual nem sempre há gente assim tão sempre disponível. Há décadas que estou ou me cruzo com ele nos mais inesperados cenários e mais diversos fóruns. Ainda pasmo com a sua torrencial inteligência, o brilho, o voo do raciocínio, o humor, que lhe pode ocorrer irresistível e leve, ou chispar-lhe sibilino, assassino; assisto sem esforço ao seu poder de captura de uma sala ou uma plateia, ocupando vertiginosamente e com puro deleite o centro de uma ou outra. Mas também conheço outras coisas e por isso nunca me deu jeito ignorar a sua inclinação para a valsa da intriga, (duplamente palaciana, na ocorrência); a insistente substituição do enfrentamento – quando seria caso dele – pela preferência, digamos, do diálogo defensivo; ou algumas suas atitudes que ou me desconcertavam ou me iravam. Quase sempre dava-se a volta, a vida continuava.

Pode falar-se de amizade? Pode com certeza. Foram muitos anos de partilha das mesmas coisas e do saber das mesmas coisas (o que não é o mesmo). Tempos de imenso trabalho comum. De concordância e (veemente) discordância, de ilusões – umas perdidas, outras ganhas –, admoestações, desencontros, reencontros. Muita vida vivida, e em algumas épocas, de enorme proximidade (e muito riso comum, o que une mais que separa).

2 Tudo isto para concluir (e paciência se há risco na conclusão) que sendo as coisas o que são, o culto da proximidades, os afectos, as selfies do Presidente da República estão fora de estação. Não servem para esta. As circunstâncias mudaram. Se o figurino de uma maioria absoluta não nos é desconhecido, a actual maioria tem algo de aterrorizantemente novo, lembra um cerco, o país está cercado pelo Estado. Não é pouco mas houve mais: o voto de Janeiro reconfigurou o hemiciclo de S. Bento. Pela primeira vez há quatro partidos fora do espaço socialista, três com representação parlamentar; a oposição não nos fará lembrar as oposições do “costume”, pouco terá a ver com o passado, nem com o mais recente nem com o de há dez, vinte ou trinta anos. O debate político assumirá novos argumentos, conteúdos e perfis. A oposição à direita será fragmentada, tonitruante, desnorteada e – não é contraditório – muito assertiva. Forte mesmo que o não esteja (ou não seja?). À esquerda haverá mais orfandade que novidade – o foco não será lá que está – e mais agonia que viço.

A política mudou. E Portugal, de uma certa forma também mudou: para pior . Mais envelhecido, mais empobrecido, menos crescido, menos educado. Muito instalado no Estado e pouco predisposto a mudar, Portugal todos os dias nos lembra que as pátrias podem entrar em declínio como as empresas entram em falência. Numa palavra, as relações dos vários actores políticos com o Presidente-protagonista-mor-do-reino terão que ser outras. Melhor ou piores, não se sabe. Sabe-se que serão outras.

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3 Marcelo percebe que joga hoje o sentido do seu mandato. O deixar ou não deixar uma assinatura por debaixo dos seus dez anos como Chefe do Estado, Presidente da III República, Comandante Supremo das Forças Armadas. Arrisco a dizer que joga a sua reputação como ocupante do mais alto cargo nacional. Por saber isso, está atento. E no entanto… mesmo estando atento, comete pecadilhos desesperadamente inúteis – a alocução aos campeões de Futsal; a (indecifrável) comparação da pandemia com a revolução e a seguir (ou antes, já me perdi) com uma “escola de vida”; algumas bizarrias na recente viagem a Paris.

Sucede que a estação em que iremos entrar um destes dias exige politicamente mais: mais solidez, mais rigor, maior atenção. A tudo. A todos e não só, obviamente, à maioria socialista. A nova estação supõe porém novos instrumentos de navegação: será o Presidente capaz de doravante praticar alguma parcimónia com o próprio verbo, usando-o com mais utilidade que periodicidade? Conferindo maior substância e importância à palavra presidencial e menos ao comentariado que nunca mobiliza, antes banaliza? Capaz de ser mais parco que aparecido, fugindo dessa banalização da Presidência  – e do cansaço dos presididos? Estará consciente da conveniência em trocar a sua amável e afável cumplicidade com a esquerda, pela vigilância activa e incisiva que os dias lhe reclamam e uma considerável parte de portugueses lhe exigem? Não sei. Desejaria que sim. Faltam ali momentos de grandeza.

4 O que sei é que será politicamente muito interessante observar como encarnará – e protagonizará – o Chefe de Estado a sua necessidade de procurar outro registo: no estilo, no verbo, no gesto, no passo e depois de lhes dar um sentido. Para deixar de ser menos Marcelo e mais Presidente. Já não tem muito tempo. Não é certo que o faça. Pode não saber. Ou pode não querer, tem o absoluto exclusiva dessa escolha.

Dir-me-ão que teria de nascer outra vez. Mas aos que sabem e aos que querem, os deuses concedem por vezes a graça de nascer segunda vez.

PS1: Escrevi acima a palavra declínio. Os declínios começam por emitir sinais. Já nos apercebemos de alguns como – por exemplo – a constante falta de assunção de responsabilidade por parte do poder, seja num erro, numa omissão, numa trapalhada, numa demora. Agora houve mais um e eloquente: a história do impedimento do voto para milhares e milhares de portugueses que vivem fora de portas foi uma privação de direitos. Até hoje não se sabe porquê, só se conhecem evasivas, passa culpas, fugas à responsabilidade. Já conhecíamos a invenção de forçadíssimos – ou mesmo falsos – culpados. O motorista do ex-Cabrita, o funcionário despedido da Câmara de Lisboa no caso de Medina versus/cedência de dados de cidadãos estrangeiros as respectivas embaixadas. Etc. Desta vez, no caso dos votos, houve um upgrading: a usurpação de um direito fundamental não teve rosto nem assinatura.

PS2: O estado mental do país começa a meter medo. Deve ser levado a sério como a dívida ou o deficit. Interrogo-me até se aqueles que apontam algum desequilíbrio a terceiros não estão eles mesmos fora de si… Falo, claro, do que se passou com um tal João, estudante obviamente perturbadíssimo, com Internet a mais na cabeça e calor humano a menos, mas que logo foi expeditamente, antecipadamente, gloriosamente catalogado de terrorista. Não há critério, não há medida, não há mediação, não há senso, não há juízo? Apetece fugir.