O Presidente da República passou os últimos dois dias debaixo de fogo, a tentar emendar as suas declarações inconcebíveis sobre os abusos sexuais na Igreja — no fundo, a tentar convencer-nos que não disse aquilo que efectivamente disse e que todos percebemos que ele dissera. Acontece que essas declarações inconcebíveis sobre os abusos sexuais na Igreja distraíram temporariamente o país acerca de outras declarações inconcebíveis que fez no mesmo dia e nas quais insistiu ontem: a de sugerir que as situações de incompatibilidade dos ministros se resolveriam com uma alteração à lei.

O Presidente da República disse isto: “se há dúvidas, se se entende que a legislação deve mudar, se durante décadas parlamento e Governo não entenderam que era necessário ou tomaram iniciativas consideradas tímidas ou insuficientes”, então o Parlamento deve pronunciar-se sobre a questão, “e ponderar a aprovação de uma nova lei”. Ora, a tomada de posição do Presidente da República exibe tantos problemas que só podemos ficar inquietos. É que, ou Marcelo não percebe as implicações do que diz, ou Marcelo se faz desentendido — é difícil decidir qual das opções é a pior.

Em primeiro lugar, não há confusão nenhuma sobre a lei das incompatibilidades, ao contrário do que afirma o Presidente da República. A lei é claríssima. O que existe é uma neblina de fumo e confusão criada pelo PS (como explicou Miguel Pinheiro sobre o caso de Pedro Nuno Santos), ignorando partes da lei e misturando alhos com bugalhos, para assim escapar às consequências do incumprimento — que é a demissão dos ministros que tenham violado a lei. Não vale a pena inventar: já toda a gente percebeu que há situações de incompatibilidade (no caso de Manuel Pizarro, o próprio a admitiu). E, se as há, a lei não deixa espaço para interpretações: a punição é a demissão dos ministros.

Em segundo lugar, a questão não reside na apreciação sobre se a lei é tímida, insuficiente, justa ou injusta. Nem é suposto iniciar-se uma tertúlia sobre os melhores regimes de incompatibilidade para o exercício de cargos políticos. Para a discussão agora em causa, é irrelevante concordar-se ou discordar-se da lei, basta aplicá-la. De resto, só com uma enorme lata é que o PS poderia argumentar que a lei não está adequada: esta foi aprovada com os votos do PS, em 2019, e promulgada pelo Presidente da República. O PS teve a oportunidade de alterar a lei como quis — e fê-lo. Foi há meros dois anos. Portanto, a lei está em vigor e, tanto quanto sei, as leis que estão em vigor devem ser cumpridas. Não concordam com a lei que redigiram? Paciência.

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Em terceiro lugar, o Presidente da República parece sugerir nas entrelinhas que mudar a lei seria a solução para ultrapassar as situações de incompatibilidade dos ministros. É uma segunda tentativa de salvar o governo do buraco em que se enfiou. Há dias, havia tentado uma outra solução — a de que o problema desapareceria logo que os ministros abdicassem das posições que detêm nas empresas. Ora, nenhuma das duas tentativas está correcta. Por um lado, uma nova lei só se aplicará a partir da data da sua promulgação (e não retroactivamente). Ou seja, à data da ocorrência dos factos, a lei em vigor é a que existe e, de acordo com esta lei, são evidentes as situações de incompatibilidade dos vários ministros. Por outro lado, a existência de incompatibilidades não se resolve dissolvendo ou vendendo participações nas empresas. Aliás, ninguém precisa de pensar em soluções, porque estão explicitadas na lei: a única solução prevista é a demissão do ministro. Tudo o que seja fugir a isto só pode ser qualificado de tentativa de escapar à lei, ferir a ética republicana e prejudicar o bom funcionamento do regime democrático.

Perdoem-me esta insistência num dos princípios mais elementares do Estado de Direito: as regras e as leis existem para serem cumpridas e respeitadas. Como escrevi na semana passada, o país já percebeu que o PS não aceita que as regras e as leis se lhe apliquem, vivendo numa espécie de regime de excepção permanente. Quanto a Marcelo, o que se lhe exigia era particularmente simples: falar uma vez e dizer o óbvio — que a lei é para cumprir e que, perante situações de incompatibilidade, os ministros em causa deveriam abandonar o governo. Na prática, defender o regime e o cumprimento da lei.

Não foi o que Marcelo escolheu fazer. E, se já tínhamos suspeitas fundamentadas sobre o seu posicionamento, agora temos a confirmação: também o Presidente da República, a quem confiamos o cumprimento da Constituição e a protecção das instituições democráticas, age como um dono disto tudo. A fim de proteger o governo, Marcelo baralha os factos, inventa interpretações legais e pede uma nova lei (que o PS, com maioria absoluta, fará à medida das suas necessidades). Seria possível tudo isto ficar ainda pior? Talvez fosse. Mas, chegados ao ponto em que o governo e a Presidência da República se unem para incumprir a lei, só com alguma imaginação se poderia conceber visão mais falhada de democracia liberal.