“Os nossos piores inimigos não são circunstâncias beligerantes, mas espíritos vacilantes.”

Christine Lagarde, Fórum Anual do BCE, Sintra, 

1 É um clássico em Portugal. Somos europeus, com todas as estrelas douradas a decorar as nossas camisas azuis, sempre que precisamos de pedir fundos (de mão bem estendida) para financiar as nossas políticas públicas ou necessitamos que o Banco Central Europeu (BCE) compre a nossa dívida para baixar os juros — e para assegurar uma forma de financiamento do nosso Estado.

Mas já despimos a camisola azul (e escondemos com vergonha as estrelas douradas) quando a Europa não nos faz a vontade.

Vem isto a propósito do BCE e da sua política monetária restritiva se ter tornado o bombo da festa do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, do primeiro-ministro António Costa e de Luís Montenegro, presidente do PSD — todos conceituados economistas, como bem sabemos.

A crítica é fácil de explicar: como o BCE errou no diagnóstico da inflação (era estrutural, e não conjuntural) e chegou tarde ao combate à inflação, então agora tem de parar de aumentar as taxas de juro para evitar uma recessão na Europa.

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É verdade que a substituição do escudo pelo euro já tem mais de 20 anos, logo é natural que já nos tenhamos esquecido de como era o tempo em que o primeiro-ministro e o ministro das Finanças diziam ao governador do Banco de Portugal quando tinha de desvalorizar o escudo ou aumentar (ou descer) as taxas de juro para melhor acomodar o interesse político do respetivo Governo. E não o do país.

É por isso que, por questão de princípio, desconfio sempre de políticos que querem mandar nos bancos centrais, nos supervisores e reguladores. O resultado final não costuma ser positivo para o respetivo país.

2 Analisemos os factos sobre o atual ponto da situação da inflação, da melhor forma de combater o surto inflacionista e as taxas de juros dos principais bancos centrais do mundo. Sendo certo que o BCE tem um mandato claro desde a sua criação (e devidamente inscrito nos tratados europeus): controlar a taxa de inflação em redor dos 2%.

E os os factos são fáceis de descrever para a zona euro:

  • a taxa de inflação em junho foi de 5,5%. Em maio tinha sido 6,1%;
  • a inflação core ou subjacente (exclui energia e bens alimentares) em junho foi de 5,4%. Tinha sido de 5,3% em maio. Subiu uma décima de ponto percentual;
  • os preços da energia desceram 5,6% em junho. Em maio tinha caído 1,8%;
  • os preços dos serviços subiram 5,4%;
  • a taxa de inflação caiu em 18 dos 20 países da zona euro, tendo subido apenas na Alemanha e manteve-se estagnada na Croácia;
  • A taxa de inflação ficou abaixo dos 2% (a meta do BCE) em Espanha, Bélgica e Luxemburgo;
  • Portugal teve uma taxa de inflação de 3,4% mas a inflação subjacente manteve-se acima dos 5%.

Perante este cenário, que continua a ser de grande preocupação, o que disse a presidente Christine Lagarde no Fórum do BCE que se realizou em Sintra? Duas mensagens essenciais:

  • O BCE está “empenhado em alcançar” a médio prazo de uma taxa de inflação de 2%;
  • E o supervisor europeu está empenhado a atuar “em qualquer circunstância”, mantendo-se a subida prevista de 0,25% na taxa diretora para julho e, provavelmente, de mais 0,25% em setembro.

Enfatize-se que Lagarde foi acompanhada nesta mensagem por Jay Powell, líder da Reserva Federal dos Estados Unidos, e de Andrew Bailey, governador do Banco de Inglaterra. Os três afirmaram a uma só voz no Fórum do BCE, em Sintra, que as taxas de juro continuarão a aumentar até a inflação estar controlada.

Powell disse de forma clara: “apesar da política [monetária] ser restritiva, pode não ser restritiva o suficiente e ainda não foi restritiva pelo tempo suficiente”. A Reserva Federal interrompeu as subidas da taxa diretora mas estas declarações de Jay Powell indicam claramente de que se prepara para inverter essa interrupção.

3 É neste contexto que as nossas elites políticas, num estranho consenso com o Bloco de Esquerda e do PCP (dois partidos anti-europeus), decidiram atacar a política monetária do BCE, avisando de que a mesma pode levar a uma recessão económica.

É dos livros da ciência económica que a receita clássica para ter sucesso no combate à inflação passa sempre pela subida de juros para tentar reduzir a pressão da procura e aumentar a poupança. Daí que a subida dos salários tenha de ser sempre cautelosa, sob pena de estar a criar ainda mais inflação. E esse é o pior dos pesadelos dos decisores públicos: uma inflação descontrolada.

Como querem as nossas elites políticas que o BCE afrouxe a sua estratégia monetária, se os cenários que desenhou continuam com maus resultados? Por exemplo, a inflação média anual prevista para 2023 na zona euro ficará acima de 5% — tanto em termos globais como a nível subjacente — e ainda deverá ficar em 3% no ano seguinte.

Mesmo em 2025, o último ano das projeções, poderá continuar acima dos 2%.

Se Marcelo, Costa e Montenegro não querem um aumento das taxas de juro, o que fariam então para conseguir atingir o objetivo de 2% para a taxa de inflação?

4O governador Mário Centeno conseguiu ainda ser bastante pior do que o poder político. No mesmo dia em que Lagarde garantia ao mundo que o BCE estava “empenhado em alcançar” a meta de 2% para a taxa de inflação e em que os líderes dos três principais bancos centrais do mundo garantiam que as taxas de juro iriam continuar a subir por a inflação ainda não estar controlada, Centeno surpreendeu a opinião pública com mensagens contrárias numa entrevista à RTP:

  • “A trajetória das taxas de juro vai continuar em alta mas está estabilizada“;
  • “estamos muito próximos de ter de pausar a política monetária”;
  • estão previstas “quedas efetivas, mas baixas, na taxa Euribor ao longo de 2024″, acrescentando que a Euribor deverá atingir o pico entre setembro e novembro. Mais: Centeno especificou mesmo que a Euribor a 12 meses vai atingir o pico “em setembro” e a Euribor a 3 meses e a 6 meses atingirão o seu máximo em “novembro”.

É estranho que um homem tão cauteloso com o seu próprio dinheiro, seja tão temerário nestas projeções que, repito, contrariam o discurso da presidente do BCE.

O que me suscita as seguintes questões:

  • Como é que a trajetória das taxas de juro “está estabilizada”, se a presidente do BCE pré-anunciou na prática duas subidas de 50 pontos base que, globalmente, vão passar a taxa de juro para 4%?
  • Como é que o BCE está “muito próximo de pausar” a subida das taxas de juro, quando Lagarde anunciou precisamente o contrário e recusa explicitamente qualquer pausa? Mais: o Fed e o Banco de Inglaterra também recusam qualquer pausa.
  • E, finalmente, como é que Mário Centeno pode garantir ou prometer “quedas efetivas, mas baixas, da taxa Euribor ao longo de 2024, especificando mesmo que o pico será atingido em setembro (Euribor 12 meses) e em novembro (3 e 6 meses)? O governador Centeno tem mecanismos para controlar o mercado livre da Euribor que costuma antecipar as subidas da taxa de juro decididas pelo BCE?

5 Além de contrariar toda a narrativa oficial do BCE, é claro que o faz só para consumo interno e com o objetivo declarado de atenuar as consequências políticas para o Governo de António Costa da subida das taxas de juro. Centeno não despiu o fato de político e de braço direito do primeiro-ministro.

Mário Centeno atua mesmo, como se viu uma vez mais na entrevista à RTP, como uma espécie de diretor de comunicação de António Costa, falando insistentemente na “transformação” que ocorreu nos “últimos anos” que fez com que a economia portuguesa tenha reagido “de forma única” aos choques.

Mais: a narrativa da “transformação” também explica, segundo Centeno, as subidas de rendimento disponível “nominal” superiores a 20% (6% em termos reais) para os mais pobres desde 2019 porque a “política orçamental reagiu” e “Portugal é muito diferente do que era há uns anos.”

Ouvir Mário Centeno é ouvir uma história de auto-elogio disfarçado, sobre como o Sol desceu à terra desde que António Costa tomou posse como primeiro-ministro em 2015 e o nosso herói de Vila Real de Santo António subiu a ministro das Finanças para operar a tal “transformação” histórica.

Ironias e sarcasmos à parte, esta narrativa de Mário Centeno só prova de como muitos dos que temiam uma governamentalização do Banco de Portugal tinham razão para o seus receios.

6 Centeno não é um governador do Banco de Portugal. É um político comprometido que está emprestado a uma instituição que deve primar pela independência face ao poder executivo.

A prova disso também é a forma despudorada com que insiste, mesmo tendo a obrigação de ser independente de qualquer força partidária (o que o obriga a ter um distanciamento claro da arena política), em fazer apreciações e ataques políticos perfeitamente descabidos ao Presidente Cavaco Silva ou ao ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho por terem liderado o país durante o tempo da troika — troika essa que foi chamada por um Governo do PS liderado por José Sócrates.

Qual é a necessidade que um governador do Banco de Portugal tem de dizer em 2023 que “ao contrário do que se tentou vender há alguns anos, de que estávamos a viver acima das nossas possibilidades e os portugueses eram descritos lá fora como incumpridores… isso é tudo falso. É uma história que não cola com a realidade. Nem sequer com o ser português”?

Por acaso, Mário Centeno quererá redesenhar as características da portugalidade à luz da bancarrota financeira para a qual o Governo de José Sócrates (do qual António Costa e tantos outros socialistas hoje no poder fizeram parte) tanto contribuiu?

Por que razão Mário Centeno sente necessidade de insistir de que “temos que ter uma tradução nos números daquilo que é o nosso pensamento porque senão entramos em realidades virtuais como aquelas que eu referi há pouco, da ideia dos portugueses em geral viviam acima das suas possibilidades e, por isso, merecíamos um castigo. Isso não é maneira de comunicar com as pessoas.”?

É claro, como o meu colega Vítor Gonçalves fez questão de perguntar, que Mário Centeno corre para algum lado e quer regressar à política através do PS. “As portas da política são públicas. É por isso que vivemos numa democracia liberal. E eu faço parte dessa democracia liberal”, afirmou na entrevista à RTP.

Tem todo o direito de o fazer. Escusa é de destruir pelo caminho a independência do Banco de Portugal — e de ser um daqueles “espíritos vacilantes” a que Christine Lagarde se referiu em Sintra como os inimigos da política monetária do BCE.