O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, parece ter inventado uma forma milagrosa de resolver os problemas do seu país, através da sua conversa televisiva com o povo. Resolve todos os problemas nas mais diversas esferas, nomeadamente o fornecimento de água canalizada a remotas aldeias russas, a recolha do lixo ou o salário dos bombeiros.

É verdade que os russos sofrem da mesma doença do que os portuguesas: “sebastianismo”, e ainda há muitos que acreditam que o Czar (Presidente) não resolve os problemas do povo porque os malvados boiardos (funcionários públicos) os escondem. Por isso, o número de perguntas enviado ao dirigente russo bateu mais um histórico recorde: mais de dois milhões.

Putin respondeu, em quatro horas e dez minutos, a 85 perguntas. Mas, antes disso, repetiu que o país avança no sentido certo e que, agora, é que os programas nacionais de saúde, educação, inovação, transportes, desporto, etc., que deverão ser realizados até 2024 e onde serão gastos biliões de rublos, irão ser o motor do desenvolvimento económico e social da Rússia.

Foram muitas as queixas sobre a falta de medicamentos comparticipados pelo Estado, mas as explicações foram rapidamente encontradas por Vladimir Putin, nomeadamente:  “acontece que os armazéns estão cheios de medicamentos, mas não chegam ao consumidor por falta de troca de informação”. A ministra da Saúde Veronika Skvortsova foi chamada, por vídeo-conferência, a responder pela falta de medicamentos e revelou: “a quantidade de medicamentos aumentou consideravelmente. As transferências foram feitas na totalidade. Foram detectadas 30 regiões onde existem sérios problemas de logística”.

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Tiveram mais sorte as dezenas de golfinhos e baleias do Extremo Oriente russo que foram libertados devido à intervenção do dirigente russo, o mesmo se pode dizer dos habitantes de uma remota aldeia russa que passarão a ter água potável porque um dos seus habitantes conseguiu chegar à fala com o Presidente.

Refugiados ucranianos queixaram-se a Putin de que estavam com dificuldades em receber a cidadania russa, mas as autoridades locais surgiram logo para dizer que o problema, que já se estende há anos, iria ser resolvido.

Foram muitas as queixas contra a falta de médicos especialistas e as filas nos centros de saúde, mas quando os correspondentes da televisão russa chegavam ao local, verificavam que não havia filas. Um bombeiro de Kaliningrado queixou-se dos baixos salários e o governador dessa região apressou-se a prometer que iria resolver o problema. Pelos vistos, os governadores de todas as repúblicas e regiões da Federação da Rússia estavam atentos às palavras do Presidente.

Vladimir Putin não dedicou muito tempo à política externa, mas não perdeu oportunidade de mandar recados aos Estados Unidos: “Vemos o que acontece na política interna,[Donald Trump] enfrenta um grande número de limitações… Além disso, ele agora irá olhar sempre para as exigências da campanha eleitoral. A elite americana especula nas relações russo-americanas e inventa todas as falsidades… Por isso, logo que os nossos colegas estejam prontos, responderemos a isso da mesma forma, tanto mais quando há temas para conversar: segurança internacional, desarmamento, estabelecimento de um diálogo normal”.

Quanto a uma potencial guerra entre os Estados Unidos e o Irão, Putin considera que ela terá “consequências catastróficas”.

À pergunta: “porque é que a TV mostra tantas armas novas, para que guerra nos preparam?”, Putin respondeu que a Rússia está no sétimo lugar quanto aos gastos com armas, frisando que à frente dela se encontram os Estados Unidos, China, Arábia Saudita, Grã-Bretanha, França e Japão. E acrescentou: “Somos a única grande potência militar que reduz as despesas com armamentos. Em 2019, gastamos menos de 3% em armamentos, em 2021, gastaremos cerca de 2,8% do PIB. Nenhum grande país faz isso. Mas o que é curioso é que, não obstante as baixas despesas militares, garantimos não só a paridade, mas estamos dois a três passos à frente”.  Não será este um verdadeiro milagre?

As conversas de Vladimir Putin com o povo trazem à memória as sessões de Anatoli Kaspirovski, nos anos de 1990, quando este curandeiro tratava de todas as doenças possíveis e imaginárias através dos ecrãs de televisão. Não havia maleita que resistisse.

A dado momento, o dirigente russo reconheceu que, às vezes, tem vergonha e contou a história de uma mulher que, durante uma das suas visitas pelo país, se atirou aos pés dele para lhe entregar uma nota escrita. Putin prometeu que a iria ler e entregou-a a um dos assessores. A nota perdeu-se algures e ele continua a ter vergonha.  Por isso, diz que trata de todos os pedidos pessoalmente. Há 19 anos no Kremlin e os pedidos não param de chegar. Por conseguinte, talvez decida ficar à frente da Rússia depois de 2024, para cumprir aquilo que até agora não fez.

P.S. Após a “conversa com o povo”, Vladimir Putin comentou as acusações da Comissão Internacional de Investigação que culpa três russos e um ucraniano do derrube do avião civil malaio nos céus da Ucrânia, em 2014. A resposta do Presidente russo não surpreendeu: “O que foi apresentado como provas de responsabilidade da Rússia, não nos convence absolutamente. Acreditamos que não há provas”. Nem haverá, até que Putin saia do Kremlin. Repete-se a mesma história do avião civil sul-coreano, derrubado pela aviação militar soviética em 1983. A verdade foi revelada oito anos depois, após a da queda da URSS.