O pior no acórdão do Tribunal Constitucional (TC) não é o chumbo. Muito mais perigosa é a ilusão que provoca, expressa no entusiasmo com que foi recebida por partidos políticos e alguns sectores da sociedade, de que o ajustamento financeiro está concluído e que podemos retomar tranquilamente a nossa normalidade no ponto em que ela foi interrompida, em 2010.

De facto, é fácil discordar da decisão do TC, quanto aos salários da função pública – tanto porque, em anos anteriores, cortes semelhantes passaram na avaliação do TC, como porque o governo tem um plano gradual para a reposição dos cortes salariais. Mas é difícil ficar surpreendido por a decisão ter ido nesse sentido. Na verdade, o TC apenas tornou oficial o que, nas entrelinhas dos seus acórdãos, tinha dado a entender desde a primeira medida de contenção orçamental que analisou: o ajustamento orçamental pelo lado da despesa é inconstitucional. E, sendo inconstitucional, seria tolerado enquanto houvesse troika, e só porque esta tinha um prazo para sair – 17 de Maio de 2014. A partir daí, tudo mudaria. E, realmente, tudo mudou.

A ironia é indisfarçável: a saída da troika era o nosso 1640? Pois. A independência restaurou-se, mas trouxe com ela os vícios que levaram à sua rendição. Agora que a tolerância constitucional dos juízes se esgotou e que as ilusões crescem, a ordem é para regressar a 2010. É essa a porta que o acórdão do TC abre. A porta que a troika e os agentes políticos responsáveis temiam: a da sofreguidão de fazer recuar a agulha temporal, de fazer 2014 um novo 2010. E não se perdeu tempo. Cerca de 15 dias após a troika sair do país, já são tantos que cantam vitória – através do TC, começou-se a desfazer o que foi feito. Os juízes decidiram, está decidido: o nosso futuro é o nosso passado.

Tudo isso é duplamente mau para o governo e para o país. No presente, porque prejudica o ajustamento financeiro, pondo em causa o cumprimento das metas orçamentais – como conciliar a diminuição da despesa pública com a reposição dos salários e de que modo um eventual aumento de impostos interferirá nas estimativas de crescimento da economia? E, no futuro, porque a ilusão de regresso ao passado fragiliza o projecto de mudança no país – se os portugueses aderirem à ilusão e se a esquerda for governo em 2015, o que impedirá o pós-troika de se converter num pré-troika?

Por isso, o desafio que está na mesa é muito mais exigente do que uma simples escolha entre soluções orçamentais, com vista a tapar o buraco cavado pelo TC. A responsabilidade do governo consiste em fazê-lo de forma a travar a concretização dessa perigosa ilusão. Recuperando os cortes salariais de 2013 e ficando sujeito a um novo chumbo constitucional? Aumentando os impostos até esmagar o consumo? Renegociando metas do défice, ganhando tempo mas dando um sinal contraditório aos mercados? Todas as soluções são más.

Resta-nos esperar para ver. Mas, no meio de tanta incerteza, acentuou-se uma evidência. A margem de manobra do governo é cada vez mais curta, pelo que, ou o governo enfrenta com distinção os seus próximos desafios (resposta ao TC, orçamento de estado para 2015 e reforma do estado) ou falhará na sua missão e cairá derrotado nas eleições legislativas de 2015 – esteja quem estiver no PS. Para o governo, este factor tem de ser lido com a maior das importâncias. E não por motivos de tacticismo eleitoral. É que a concretização do regresso a 2010 não é uma questão orçamental – é um projecto político. E perder as legislativas seria permitir a sua materialização.

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