O estilo de intervenção política de Marcelo Rebelo de Sousa terá virtudes, mas também acarreta riscos. Um Presidente da República que insiste em estar no centro do palco mediático, que fala de tudo e que coloca a mão em vários dossiers que não pertencem à sua esfera de responsabilidades seria apenas uma excentricidade institucional se, de facto, Marcelo falasse mesmo de tudo. Só que não fala: quando se observam incompetências gritantes ou erros graves no perímetro das suas responsabilidades políticas, Marcelo refugia-se no silêncio. Fica mudo, calado, desaparecido. Nem ai, nem ui. E nesse contraste reside o problema: demasiadas vezes, Marcelo fala ao país para partilhar lugares-comuns, mas depois nada refere acerca do que realmente importa e lhe diz directamente respeito.

Então, o que importa ouvir da parte do Presidente da República? Posições que tenham a ver com a sua missão de garante do regular funcionamento das instituições democráticas e de protector do cumprimento da Constituição. Ele que, aliás, é professor de direito constitucional e tem, como tal, conhecimentos para analisar técnica e politicamente eventuais dilemas. Ora, nesse domínio, há três assuntos nos quais o silêncio de Marcelo só pode ser recebido com estupefacção.

Primeiro ponto: o respeito pelo direito de voto dos portugueses. Após o parecer da Procuradoria-Geral da República, que informou da ilegalidade em impedir os cidadãos de votar, estivessem estes ou não em isolamento profiláctico, Marcelo não tem nada a dizer sobre o facto de, em eleições anteriores (autárquicas e presidenciais), milhares de portugueses terem sido impedidos de votar em virtude de regras impostas pelo Governo e com a conivência da Presidência da República? Estando em causa uma violação da Constituição, Marcelo tem especiais responsabilidades neste atropelo democrático, acerca do qual não disse uma palavra — o parecer da PGR foi divulgado há um mês.

Segundo ponto: a opção de declarar Estado de Calamidade, em vez de Estado de Excepção, enquanto se mantêm ilegalmente inúmeras restrições à circulação dos cidadãos. Aconteceu, por exemplo, com o isolamento de turmas nas escolas: de acordo com os juízes do Tribunal Constitucional, o isolamento de turmas durante os períodos em que vigorou o Estado de Calamidade foi inconstitucional, porque tal restrição apenas poderia ter sido aplicada se enquadrada por um Estado de Excepção. Estamos, portanto, a falar de uma violação da Constituição, que era desnecessária, mas que foi provocada por incompetência e conveniência política (os Estados de Excepção têm de ser quinzenalmente renovados e votados no parlamento). De quem é a responsabilidade? De quem considerou que o enquadramento de Estado de Calamidade seria suficiente para as medidas em vigor — Governo e Presidência da República. Agora, perante esta avaliação dos juízes, como justifica Marcelo a sua actuação? Não justifica.

Terceiro ponto: a votação dos emigrantes nas eleições legislativas foi um processo desastroso, que culminou na anulação de 80% dos votos no círculo eleitoral da Europa. Houve falhas que impediram emigrantes de votar. Houve votos misturados nas urnas — com e sem cópia do cartão de cidadão. Houve reuniões informais entre PS e PSD, no edifício do Ministério da Administração Interna, para tentar um arranjinho e contornar a lei na contagem dos votos. E houve, agora, um acórdão do Tribunal Constitucional que mandou repetir as eleições neste círculo eleitoral da emigração, e que arrasa completamente a acção das autoridades políticas neste processo — por exemplo, assinala que acordo informal entre PS e PSD é grosseiramente ilegal. Nos dias em que a situação se arrastou, Marcelo começou por desvalorizar e assegurar que os prazos para tomada de posse do parlamento se manteriam, para agora assumir que foi surpreendido pela decisão do TC de mandar repetir as eleições. E concluiu: é “a democracia a funcionar” e é “uma lição para os partidos”. Está redondamente enganado: é também uma lição para o Presidente da República, que legitimou, com o seu silêncio, que a democracia portuguesa fosse tão maltratada.

Talvez valha a pena abdicar desde já das ilusões: Marcelo será sempre Marcelo, o que significa que manterá tanto a obsessão pelo centro do palco político como pela gestão calculista dos seus silêncios. Mas há uma questão que talvez Marcelo devesse ponderar para este segundo mandato: como é que pretende ficar na história? A popularidade é efémera, o que fica são as decisões e as suas consequências. Ora, neste momento, popular ou não, Marcelo é o Presidente da República que, sucessivamente e num momento particularmente delicado das nossas vidas, permitiu atropelos grosseiros da Constituição e nada fez para os reconhecer ou assumir. Ou seja: por enquanto, Marcelo é um Presidente que falhou. A questão para os próximos anos é se quererá continuar a falhar.

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