Há dias, escrevi nas famosas “redes sociais”: “Na CMTV está um candidato presidencial a dizer que um futebolista não tocou com a mão na bola. Portugal é grande.” Esta insignificância teve perto de 100 comentários, boa parte deles a lembrar-me que o prof. Marcelo chegou a Belém após participar em variedades televisivas desse tipo, que o prof. Marcelo também fala de futebol e se deixa filmar com cachecóis alegóricos, que o prof. Marcelo é igualmente pródigo em comentar banalidades confrangedoras, e que o prof. Marcelo, em suma, não é melhor do que o sr. Ventura.
Por acaso, concordo: o prof. Marcelo não é melhor do que o sr. Ventura. Só não digo que ambos são casos de miséria porque há para aí umas leis que proíbem a ofensa de Sua Excelência, o Senhor Presidente da República. Senão dizia. A mim, porém, a circunstância de achar igualmente lamentável o desempenho público dos dois dá-me para não gostar de nenhum. Aos apoiantes do sr. Ventura, os mesmos pressupostos permitem-lhes tirar conclusões bastante distintas: se o prof. Marcelo não é melhor do que o sr. Ventura, eles naturalmente apreciam – perdão, veneram – o sr. Ventura. E não reparam, ou fingem não reparar, na contradição. Aliás, os apoiantes do sr. Ventura são óptimos a apoiar o seu líder espiritual. E péssimos a reparar nas inúmeras contradições que o líder espiritual arrasta.
Para eles, é natural que o sr. Ventura reclame o regime de exclusividade dos deputados e o deputado do Chega acumule rendimentos provenientes de duas empresas privadas.
Para eles, é natural que o sr. Ventura prometa largar os bitaites futebolísticos “em Março” e na prática os prolongue por tempo indeterminado.
Para eles, é natural que o sr. Ventura se afirme inequivocamente contra a corrupção e inequivocamente esteja a favor de uma instituição que é vasculhada pela polícia semana sim, semana não.
Para eles, é natural que o sr. Ventura denuncie a proximidade do prof. Marcelo ao banqueiro Salgado e disfarce mal a sua proximidade ao sr. Vieira do Benfica.
Para eles, é natural que o sr. Ventura condene o “sistema de extorsão fiscal transformado em terrorismo de Estado” e seja funcionário (hoje de licença) dessa “máquina de assalto ao cidadão” que é a Autoridade Tributária.
Para eles, é natural que o sr. Ventura afirme que trabalhava no fisco para perseguir os “grandes devedores” e ande ao serviço do tal sr. Vieira, que é dos maiores.
Para eles, é natural que o sr. Ventura critique os subsídios excepto quando os ditos venham a jeito para patrocinar os “media” que o empregam e correspondem à vontade do chefe que lhe paga.
Para eles, é natural que o sr. Ventura recite estrofes sobre a importância da educação e assine romances deliciosamente analfabetos.
Para eles, é natural que o sr. Ventura exalte o primado da lei, para uns assuntos, e deseje reescrever a Constituição, para outros.
Para eles, é natural que o sr. Ventura se preocupe com o terrorismo islâmico enquanto rabisca teses aflitinhas com a “estigmatização das minorias” que a prevenção do terrorismo pode produzir.
Para eles, é natural que o sr. Ventura agora defenda a polícia e antes abominasse a “expansão dos poderes policiais”.
Para eles, é natural que o sr. Ventura que propõe mutilar (química ou, confessou só meio a brincar, literalmente) pedófilos seja o sr. Ventura que lamentava o “populismo penal”.
Para eles, é natural que o sr. Ventura meta os pés pelas mãos ao tentar explicar as brutais contradições acima.
É verdade que os apoiantes do sr. Ventura são bastante activos. É vê-los nas “redes” e nas “caixas” de comentários, a proclamar a vitória do sr. Ventura em debates em que o sr. Ventura aplicou os métodos aprendidos na CMTV e berrou sem parança nem grande conteúdo. Ou a desvalorizar os cépticos nas capacidades do Mestre, para eles gente “que não percebe o que está a acontecer”. Eu percebo que, embora brilhantes (eles percebem tudo), os apoiantes do sr. Ventura não são muito exigentes.
A ver se nos entendemos, eu e os apoiantes do sr. Ventura que não anseiam por dois Salazares, os que não padecem de frémitos patrióticos, os que não batem continência à passagem da “alma”, da “raça” ou da “identidade” lusitana, e os que não pairam por ali à cata de um eventual emprego. Com os restantes, partilho o nojo a um país subjugado à esquerda (não digo corrupta na medida em que dispenso redundâncias), e a um regime que oscila entre os compadrios e as alucinações, e a uma república dominada por criaturas incapazes de limpar a baba. Ao contrário deles, não contribuo para que a subjugação seja permanente, ou no mínimo demasiado longa.
É que, por mais que os seus apoiantes julguem o sr. Ventura um perigo para a esquerda, o sr. Ventura é o estereótipo da “direita” com que a esquerda sempre sonhou. É um maná para a esquerda que o guru da “direita” seja assim débil e entalado em incongruências. E é uma garantia para o “sistema” que o paladino “anti-sistema” seja assim fácil de atacar, de caricaturar e de reduzir a meia dúzia de clichés, alguns até razoáveis, todos amanhados à pressa. Não custa admitir o imenso vazio do lado de cá do PS: custa preenchê-lo com a cabeça oca do sr. Ventura, que acaba por prestar um favor à esquerda, ao sistema e à república que promete destruir – e começa por prestar diversos favores a ele próprio. Certo é que o sr. Ventura ocupou o espaço de uma oposição necessária e que, por isto ou por aquilo, abdicou de existir. Perdeu-se uma oportunidade, ganhou o oportunismo: eis o “sistema” a funcionar.