A democracia é um ente frágil. Vai e vem. E nunca vai sem sofrimento e nunca regressa com facilidade – e sem sofrimento.
Um dos seus maiores e mais populares teorizadores, Samuel Huntington, referiu-se a “vagas de democratização” ou, para sermos mais correctos, a períodos mais ou menos longos de transição para a democracia. E considerou que a “terceira vaga de democratização” teve início em 1974, com a clara madrugada portuguesa, o “dia inicial inteiro e limpo” cantado por Sofia.
No início mesmo do seu texto, inicialmente publicado em parte no número da primavera de 1991 do Journal of Democracy, Huntington interrogava-se se os 30 países que entre 1974 e 1991 tinham feito a transição para regimes democráticos representavam uma “revolução global democrática” que levaria a estender a democracia virtualmente a todo o Mundo; ou se, pelo contrário, era apenas uma mera extensão da democracia a países que, na sua maioria, tinham experiências prévias do regime, sendo por isso necessariamente precária e provisória.
As duas primeiras vagas de democratização da era moderna, explica Huntington no livro “The Third Wave”, foram ambas seguidas de um refluxo: a que entre 1820 e 1926 viu o advento de 29 democracias, começou a terminar com os camisas negras de Mussolini, Salazar e Hitler. Em 1942, não havia mais de 12 democracias no Mundo. Após a 2ª guerra mundial, nova vaga de democratização repôs o número de países democráticos, que chegaram a 36 em 1962; voltaram a ser menos de 30 em 1974, após o segundo grande refluxo. Huntington aponta cinco razões principais para a terceira vaga da democratização: a perda de credibilidade dos regimes autoritários, sujeitos ao crescente apelo popular da escolha eleitoral; a reforma do Vaticano II, que enfatizou as liberdades individuais contrárias a regimes autoritários; o crescimento económico generalizado, que reforçou a classe média; o efeito de dominó da democratização e do contágio de vizinhos (Portugal Espanha?); e a acção pró-democrática da União Europeia, quer na sua imediata zona de influência quer no Mundo, a par da norte-americana.
É com estes argumentos em mente que reflicto sobre os riscos corridos pela democracia em muitos países. Concentro-me na União Europeia que foi, no dizer de Huntington, uma das principais fontes de pressão para que os cidadãos de países do sul e leste da Europa (neste caso apenas depois da queda do Muro de Berlim) apoiassem a democratização dos seus países, pois era condição indispensável para aderir à União, assegurando assim o acesso a um clube restrito e próspero. Em boa parte do continente, a democracia nasceu da aspiração dos seus povos a fazer parte da comunidade europeia de valores, princípios e democracia. A actual rejeição da União Europeia por parte de movimentos populistas, de extrema-esquerda ou direita, um pouco por toda a Europa, é pois um sinal claro do refluxo anti-democrático em curso, a que se associa, aliás, a nova administração norte-americana, ao questionar a coesão e o futuro da integração europeia.
Não é só isso, claro: a desigualdade entre os mais ricos e pobres, que voltou a crescer depois de décadas de convergência, tornou os regimes democráticos menos apetecíveis e levou à rejeição pelos cidadãos das instituições, a começar pelos partidos políticos; nos Estados Unidos, por exemplo, parte dos eleitores de Trump provêm dos excluídos do sonho americano. E o efeito dominó funciona ao contrário, com o sucesso de programas de nacionalismo identitário a influenciar eleitorados sucessivos. Não, a História não acabou, como pretendeu Fukuyama, outro dos iludidos do sonho liberal democrático. E o monstro iliberal, que se alimenta do medo, volta a ameaçar o velho continente, que há 70 anos julgou descobrir na integração dos seus Estados a solução para o maior dos seus males, a guerra.
Imprensa livre; fronteiras abertas aos migrantes de boa-fé, tão necessários ao crescimento europeu e tão naturais na construção da nação americana; liberdade de credo e do seu exercício; comércio livre, justo e global; regulação económica contra os abusos de poder dos conglomerados, dos monopolistas, dos que manipulam a economia, tudo isso está em causa, tudo isso está em risco. A terceira vaga da democracia entrou em refluxo.
Uma onda autoritária ergue-se a Ocidente, nacionalista, no sentido do securitarismo, do identitarismo, da recusa do outro, do triunfo do medo, da negação da liberdade em todas as suas formas. Uma tendência que rejeita o globalismo e advoga o encerramento das fronteiras, a ereção de muros, o combate aos imigrantes e refugiados. Começou a manifestar-se na Rússia, na América Latina dos populismos e esquerdismos serôdios, nas Filipinas, na Tailândia, na África do Sul, alastrou a países da antiga Europa de Leste, cresceu nos bairros islamitas de Molenbeek ou de Marselha, deu asas e corpo e dentes a ideologias malsãs como a lepenista ou a de Viktor Órban; fez nascer no leste do ocidente governos iliberais.
Roberto Foa e Yascha Mounk escreveram no Journal of Democracy de Julho de 2016, quase 25 anos depois de Huntington, que a democracia está em risco no Ocidente. Só um em três holandeses dão importância ao facto de viverem em democracia e o número baixa para um terço nos EUA – o artigo foi escrito antes da era Trump e publicado logo após o brexit. Os cidadãos, mantendo embora um apoio abstracto à ideia de “democracia”, rejeitam as instituições e os princípios da regra democrática.
Foa e Mounk assinalam ainda que “a saúde de uma democracia não depende apenas do apoio a valores políticos chave como os direitos cívicos, mas também da participação activa de uma cidadania informada”. E citam o clássico de 1963 “The Civic Culture”, de Almond e Verba, lembrando que estudos sucessivos demonstram que do compromisso cívico depende “a capacidade de uma democracia de prover bens públicos, de responsabilizar os responsáveis e de garantir um governo eficaz”.
Ora a participação democrática está em refluxo; gerações mais jovens abandonam a cena política, o interesse na política diminui drasticamente à medida que cada vez mais, e mais jovens, camadas da população se retiram para a frente dos ecrãs e aderem a comunidades virtuais intelectualmente auto-suficientes e autárcicas. “Cidadãos que costumavam aceitar a democracia como a única forma legítima de governo podem estar a tornar-se mais abertos a alternativas autoritárias. Sistemas partidários estáveis nos quais todas as tendências maiores estavam dantes unidas em apoio à democracia podem entrar em fases de instabilidade extremas ou assistir à ascensão meteórica de partidos anti-sistema. Finalmente, regras anteriormente respeitadas por todos os actores políticos importantes podem ficar de súbito sob ataque por parte de políticos em busca de vantagem partidária”.
Brexit, Trump, Wilders, Le Pen, o fim do euro, da União Europeia, do comércio global, da imprensa livre, são todas, embora distintas, faces da moeda cujo principal valor consiste na criação de um mundo novo autoritário, protecionista, securitário, nacionalista, anti-globalista. As alternativas autoritárias ganham espaço. Os sentimentos anti-democráticos crescem. A desconstrução da democracia, concluem Foa e Mounk no artigo citado, pode estar em curso.
Será caso para fazermos caso, ou nem isto é suficiente? A terceira vaga assolou o Mundo em maré alta, o refluxo está em curso, devemos ter medo, ou nem por isso?
A escolha é nossa. Podemos optar por rir e cantar, ignorando a ameaça anti-democrática, ou podemos escolher por levá-la a sério e rejeitar o envelope das boas notícias falsas. Mas estamos todos convocados para resistir.