Podia ser uma lenda da Terra Média: “um novo Mal ergue-se a Leste”, em direção a Mordor, onde se esconde o ardiloso Sauron, o Senhor dos Anéis. Mas não é uma lenda, antes uma ameaça real à Europa e aos seus povos.
Estamos em perigo. Não o sabemos ainda, ou preferimos ignorá-lo. Estamos em perigo nós, portugueses de Portugal, mas também os franceses de França, alemães da Alemanha, escoceses do Reino Unido. Em perigo os europeus da Europa. O perigo é multifário, com inúmeras origens. E a ameaça tem nome, ou antes: tem nomes. Sobre nós, portugueses, bascos, sicilianos, bávaros, nórdicos, europeus do confuso e instável leste da Europa a oeste dos Urais, sobre nós, irlandeses do Sul, europeus do levante, turcos agarrados ao continente por uma jóia (Istambul), sobre nós, europeus da Europa, recai o perigo e os nomes do perigo:

O maior de todos ameaça o valor supremo conquistado pelos europeus ao longo de séculos de sacrifícios, guerras, avanços e recuos, muito sofrimento – a democracia e os direitos humanos. É o mais instante dos perigos. No próprio coração do continente, os extremismos, a demagogia, os nacionalismos xenófobos, põem em causa a democracia, conquista civilizacional cujos alicerces assentam fundo na História europeia. E contribui para o retrocesso, já o disse e mantenho apesar das críticas que recebi, a ameaça à livre circulação das pessoas na Europa, outro valor europeu que só quando (e se, como muitos anseiam) desaparecer será verdadeiramente valorizado. Na Hungria, na Polónia, avolumam-se os sinais dessa ameaça a princípios básicos como a liberdade de expressão; e alimentam a besta a crise dos refugiados e a incapacidade europeia de lhe fazer face, bem como a pressão russa nas fronteiras leste.

Outro perigo, esse partilhado com o resto do Mundo, é do aquecimento global: agora que o finalmente oscarizado Leonardo falou nisso, podemos reflectir sobre o facto de 2015 ter sido o ano mais quente desde que há registos, tendência que vem de trás, acumulando-se fenómenos naturais extremos como tsunamis, secas, cheias, furacões, tremores de terra. Anuncia-se o pico do uso das energias fósseis em 2035, devendo diminuir progressivamente depois disso; esperemos que não seja tarde de mais.

Perigo também advém da desigualdade crescente da distribuição da riqueza global: lemos num relatório da Oxfam (é difícil acreditar) que 1% da população mundial acumula tanta riqueza como os restantes 99%. Ora as pessoas com bens e dinheiro em valor superior a 695 mil euros integram o tal 1% (contas da Oxfam): isto é, dos quase 7 mil e 400 milhões de pessoas do planeta 74 milhões têm tanta riqueza como os restantes 7.326 milhões juntos! Pior: as 62 pessoas mais ricas do Mundo acumulam riqueza equivalente à dos 50% mais pobres, um valor aliás em evolução constante, prevendo a organização que em 2020 esse número desça para cerca de metade. Já se fizeram revoluções por muito menos…

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Outro nome do perigo é a religião. Já foi cristão o radicalismo, durante séculos impondo o predomínio da palavra de Cristo. Mas os excessos de outrora não justificam ou desculpam radicalismos contemporâneos, pelo contrário: os seus males deviam ter sido uma vacina, ensinando de vez aos homens os custos da sua repetição – em vidas humanas, sofrimento, destruição de bens, de sonhos de vida. A vacina não pegou: o ser humano ou é demasiado estúpido ou esquecido para aprender com os seus erros. E convém sublinhar que o jihadismo do Islão radical é infinitamente mais perigoso de que o fanatismo antigo, porque o Mundo encolheu radicalmente e o terror, hoje, viaja livre e rapidamente pelos cinco continentes, indiferente a fronteiras ou barreiras de qualquer espécie.

A Europa vive um sentimento de cerco. À volta do continente ardem conflitos antigos, acendem-se novos, da Palestina ao coração de África. E com o grito Putin ad portas (Putin à nossa porta), cresce o medo no coração dos europeus, receosos da repetição de velhas exacções. Estamos em perigo, não só nós, é certo, mas o Ocidente tornou-se o elo mais fraco, pelo risco de perder o mais precioso dos bens: o seu modo de vida.

Por esta altura já muitos leitores desertaram desta crónica. Como de costume, os meus amigos escreverão comentários simpáticos – “és um pessimista”, “vês tudo negro”, “que exagero”! Outros, mais caridosos (ou cínicos) perguntarão: “estás bem?”, “passa-se alguma coisa?”. Fica já dito que não se passa nada. Estou bem, obrigado. Mas se o direito que decorre da bondade deste jornal em acolher os meus modestos escritos mo permite, escreverei quanto vezes quiser, altissonante, com adjectivo maior e ponto de exclamação, a frase: o nosso Mundo está em perigo! Dirão os ponderados: mas não esteve sempre, não são as sociedades organizadas projectos sempre inacabados e em risco? É certo. Grandes civilizações emergiram, preponderaram, acabaram. Faraós, conquistadores, Alexandre, Ciro, César, Augusto César, Imperadores da China (“filhos do céu”), os califados, abássida, omíada, umayyad, o Império da Igreja, o mongol, o russo, o português, espanhol, inglês, Napoleão, Hitler. Todos acabaram e com eles o modo de vida que sustentavam… e os sustentava.

O poder europeu dos últimos 500 anos assentou primeiro num domínio real da tecnologia, armamento, meios de transporte, produção industrial, depois dos termos globais da troca e, finalmente, de uma espécie de softpower efetivo, com padrões de consumo ou ambientais impostos urbe et orbe. Tudo isso é passado ou tende a sê-lo. E o derradeiro e mais benévolo dos Impérios, o do exemplo democrático, respeito pelo indivíduo, pela liberdade dos povos, corre riscos. Ao longo dos séculos, civilizações, Impérios, modos de vida, predominaram e soçobraram. A sua queda foi quase sempre inesperada para os seus povos; nalguns casos (Roma por ex.), o momento do fim, que a História viria a consagrar, nem sequer foi vivido como tal pelos que o sofreram. Estará isso a acontecer aqui e agora?

“Nasci em 1881 numa nação poderosa e grande, a monarquia dos Habsburgos; mas não a procurem no mapa, ela desapareceu sem deixar rasto. (…) Onde quer que me encontre sou de terra nenhuma, um estrangeiro, no melhor dos casos um hóspede; até a pátria eleita do meu coração, a Europa, eu perdi, a partir do momento em que ela, pela segunda vez, se despedaçou na guerra fratricida que equivale ao seu suicídio.” Assim resumiu Stefan Sweig no livro autobiográfico O Mundo de Ontem a queda da civilização austríaca, a mais esplendorosa da época. E como sempre, quanto mais pacífica e idílica a paisagem, mais próximo está o Mal; Zweig relata as estadias na sua casa perto de Salzburgo: “Tantas vezes passámos ali horas agradáveis, olhando a bela e pacifica paisagem da varanda, sem suspeitar que em frente, na montanha de Berchtesgaden, se alojava o homem que haveria de destruir tudo aquilo”.

Não nos equivoquemos, o ovo da serpente volta a chocar. Nunca como hoje, em 50 anos, o nosso modo de vida esteve tão ameaçado. A Europa que construímos é a melhor forma de resistir à ameaça que chega de Leste. Destruí-la é revisitar as palavras de Zweig no prefácio do Mundo de Ontem: “Todos os furiosos corcéis do Apocalipse passaram como uma Tempestade pela minha vida – revolução e fome, inflação e terror, epidemias e emigração. Os meus olhos assistiram ao crescimento e disseminação das grandes ideologias de massa – Fascismo na Itália, Nacional-socialismo na Alemanha, Bolchevismo na Rússia, e acima de tudo a arqui-praga nacionalista que envenenou a flor da nossa cultura europeia. Fui testemunha indefesa e impotente do maior declínio da humanidade em direcção a uma barbárie que julgávamos há muito esquecida, com o seu deliberado e programático dogma de anti-humanitarismo.”

Cabe-nos resistir. E avisar: a besta corre livre. E os belos dias de inverno soalheiro deste país benquisto não impedirão a tempestade anunciada. Permitam-me ser prosaico: quem avisa não merece castigo (e é nosso amigo).