Subitamente, percebemos porque os dirigentes do PS estavam calados há tantos anos: era a vergonha. Foi preciso Manuel Pinho para finalmente se soltarem. O que é deveras estranho. É que, logo desde o início do seu processo, José Sócrates admitiu que, enquanto primeiro-ministro, as suas despesas pessoais eram secretamente pagas pelo administrador de uma das empresas com mais contratos com o Estado. Porque é que os actuais dirigentes socialistas nunca manifestaram até agora qualquer repulsa, já não digo pelo que constava da acusação, mas por este facto confessado pelo antigo líder do partido?
A direcção socialista continua a não querer ver o que está em causa. Depois de exibir a sua vergonha, Carlos César apontou logo o dedo para o lado: “o PSD também tem casos de justiça semelhantes”. Não, não tem. O PSD tem antigos membros das suas direcções e governos acusados e até condenados. Mas o PSD, com todas as suas nódoas, não tem um caso como o de José Sócrates, e não me estou apenas a referir ao facto de Sócrates ter sido líder do partido e primeiro-ministro.
O caso Sócrates não é só o de um político que aproveitou um cargo público para enriquecer ilicitamente. É mais do que isso: é o caso de um político que, se a acusação estiver certa, tentou montar um “mecanismo” para controlar o Estado, a economia e a comunicação social, isto é, que usou o seu poder para ter poder para além do que a lei, o interesse público e a decência permitem num Estado de direito democrático. Sócrates será julgado nos tribunais por corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais. Mas as suspeitas e também o despacho final da acusação não se ficam pelos crimes por que pode ser condenado. Sócrates não terá pretendido apenas juntar dinheiro na Suíça. Terá tentado também, segundo o despacho da acusação, controlar bancos, empresas, televisões e jornais, em conluio com, entre outros, um dos maiores banqueiros do país.
Em 2009, o procurador coordenador do DIAP de Aveiro, a partir das escutas do Face Oculta, sustentou “que existiam indícios da prática de um crime de atentado ao Estado de Direito”. Isto, ao contrário do que diz António Costa, não é apenas uma “desonra” para a democracia. É pior: é uma ameaça. Se neste regime foi possível a um primeiro-ministro actuar acima da lei para limitar as liberdades, nomeadamente a liberdade de informação, quem nos guarda? Em 2009, as mais altas autoridades judiciais impediram qualquer investigação. Alguém se pode sentir seguro num regime destes?
Aos políticos nunca é preciso dizer ou explicar nada. Na política, toda a gente marca cerradamente toda a gente. Nada escapa à observação, à especulação, ao rumor, à anedota, incluindo as vidas íntimas. Vão-me agora dizer que, por entre o turbilhão de escândalos que rodeou Sócrates do primeiro ao último dia de governo, os seus colaboradores e correligionários nunca repararam em nada, nunca desconfiaram de nada, nunca, ao menos, tiveram uma dúvida? E se repararam, desconfiaram e duvidaram, porque é que nunca se sentiram obrigados a esclarecer, a distanciarem-se? Porque o facciosismo os cegou? Porque o poder vale tudo, e estar no governo, com os jornais e as televisões a favor e as grandes empresas e bancos à disposição, é mais importante do que qualquer lei ou qualquer decência?
O Partido Socialista não teve a infelicidade de ter um ou dois ministros corruptos. Isso pode acontecer a qualquer partido. O PS ter-se-á prestado, como disse Ana Gomes, a ser um “instrumento de corruptos e de criminosos”, o que é diferente e sem semelhanças na política portuguesa. Os dirigentes socialistas precisam de provar que é possível confiar no PS outra vez. Era isso que deviam estar a discutir. Ter vergonha não chega.