Às vezes tenho dificuldade em explicar como é que Portugal aguentou tantos anos de salazarismo, mas há dias em que isso se me torna bem claro. São aqueles dias em que leio no twitter coisas como esta: “É incrível a quantidade de pessoas a circularem na rua com a máscara ao pescoço ou com o nariz de fora. Isto só lá vai com um polícia atrás de cada português.” E que sei que quem escreveu tal coisa foi uma antiga jornalista, professora universitária e, para nossa desgraça, durante um mandato figura de proa da Entidade Reguladora da Comunicação Social.

Fosse esta tirada um desabafo isolado e não mereceria um segundo de atenção. Mas não é. Antes pelo contrário: é um sinal dos tempos e um indicador do povo que somos. Valerá a pena explicar que na rua não é preciso andar de máscara? Não, não vale a pena explicar nada porque o que motiva este tipo de reacção é uma mistura de fidelidade canina ao poder socialista, de pulsão autoritária e, vá lá, de medo. Tudo junto permite que estejamos a assistir quase acriticamente à mais disparatada, incoerente e incompetente sucessão de medidas de saúde pública. Tudo junto também ajuda a perceber a anomia, a passividade, para não dizer a cobardia com que temos vivido sucessivas limitações injustificadas das nossas liberdades. Sempre em silêncio, ou quase.

Vamos ser claros: o problema da região de Lisboa não tem nada, mas mesmo nada a ver com festas de jovens. Os jovens são o bode expiatório – o conveniente bode expiatório, bem a aproveitado pela propaganda governamental. Para percebermos que o problema não tem nada a ver com essas festas basta olhar para o gráfico que mostro a seguir e que foi publicado – oh! heresia – pelo Instituto Nacional de Estatística a semana passada:

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Olhando para a evolução do número de novos casos nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto verificamos que no Porto esta foi bastante mais elevada durante o período do “estado de emergência”, mas depois desceu abruptamente e nas últimas semanas quase não se registam novos casos. Em Lisboa a curva começa a subir a seguir ao 1º de Maio – sim: a seguir ao 1º de Maio – e foi subindo, subindo, até atingir o seu máximo por volta de 10 de Junho. A partir daí começou a descer.

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Ao olhar para este gráfico é fácil perceber duas coisas.

A primeira é que o problema não apareceu no último fim de semana quando um grupo de jovens foi fazer uma festa para uma praia de Carcavelos – o problema tem quase dois meses, dois meses de inação das autoridades que iam olhando para os números, dizendo que havia um problema aqui ou ali (primeiro foi a Azambuja, depois foi o bairro Jamaica, a seguir os trabalhadores da construção civil), mas sem nada fazerem para além de adiar a abertura dos centros comerciais. E, claro, de entretanto tudo fazerem para trazerem a Final Eight da Liga dos Campeões exactamente para Lisboa, pintando de Lisboa o retrato o mais idílico possível.

A segunda é que as medidas anunciadas esta segunda-feira vão ser tomadas precisamente quando a curva se inverteu e começou a descer. Qual a lógica?

A lógica é uma batata, ou melhor é uma chibata, pois parece ser a única conhecida por esta governação. De repente os culpados são os jovens, de repente a culpa é dos ajuntamentos, de repente tudo se resolve com polícia e multas. Que pena, como lamentava a nossa antiga “vigilante” da liberdade de informação, não haver “um polícia atrás de cada português.”

Só que a realidade é um bocado mais complicada, não convém é falar dela. Essa realidade chama-se minorias, chama-se pobreza, chama-se habitação sem condições, chama-se transportes a abarrotar. Não é por acaso que os dois hospitais mais saturados sãos os dois hospitais que servem as zonas mais densamente povoadas e mais degradadas dos subúrbios de Lisboa – falo do Beatriz Ângelo, em Loures, e do Fernando Fonseca, mas conhecido por Amadora-Sintra. E sim, é verdade, escrevi mesmo saturados, apesar de nos estarem sempre a dizer que há excesso de capacidade e que mesmo nesses hospitais há camas livres. Só que, na prática, as coisas são de novo mais complicadas – não basta ter camas, nem basta ter ventiladores, é preciso ter profissionais para trabalhar com eles. E o testemunho de quem trabalha num desses hospitais saturados, em concreto o Amadora-Sintra, é que quando “tentamos transferir um doente ventilado, é o cabo dos trabalhos – nenhum hospital desta região tem vagas.” A teoria é uma coisa, a prática é outra.

A construção civil não parou durante o “estado de emergência”, porque é que só se tornou um problema durante o “estado de calamidade”? E porque é que, como dizia o ministro Eduardo Cabrita, as freguesias que vão ficar em “estado de calamidade” são as que ficam ao longo da linha de Sintra e do IC19 e não as que ficam do longo da linha de Cascais e da A5? Será que não entram pelos olhos dentro as diferenças sociológicas? Será difícil perceber que enquanto em Odivelas o poder de compra da população era, em 2017 (os dados mais recentes) apenas 89,3% da média nacional, em Oeiras era 156,5%? Só não vê quem não quiser ver.

Lembram-se das imagens dos trabalhadores a chegar ao centro logístico da Azambuja, onde apareceu um dos primeiros surtos? Lembram-se de na Azambuja dizerem que esses trabalhadores traziam a doença das suas comunidades? Já perguntaram o que foi feito para identificar e isolar essas linhas de contágio (eu respondo: o reforço das equipas de saúde pública nas áreas críticas só começou no final da semana passada — repito: no final da semana passada)? Já se interrogaram sobre quem foi para os bairros onde vivem aqueles trabalhadores verificar as condições de habitabilidade?

E o que é que foi feito no domínio dos transportes colectivos? O Governo diz-nos que reforçou a oferta de comboios da CP, mas o que é que sucedeu nas redes de autocarros? Segundo os autarcas, nada.

Esta terça-feira conhecemos – finalmente! – a lista das freguesias mais afectadas pelo surto de novos casos na área metropolitana de Lisboa. Porque mantiveram o segredo até agora? Porque continuam a dar informação insuficiente sobre a pandemia, tanto aos jornalistas como aos próprios cientistas? Porque é que desde o princípio a falta de transparência é a marca de água da forma de condução desta crise, uma falta de transparência que só os nossos brandos costumes toleram?

E porque é que tantas vezes trocaram os números tentando esconder o que a partir de certa altura deixou de ser possível esconder: que Portugal tinha deixado e ser “um milagre” e passara a ser “um problema”?

Podia continuar a fazer perguntas, mas não vejo como é que dos problemas que fui identificando pode resultar uma resposta à crise do surto de Lisboa que passe por fechar e lojas às 20h e mandar a polícia perseguir todos os grupos de mais de 10 pessoas (excepto se foram manifestantes anti-racistas, ou se se dirigirem para a Festa do Avante!, ou forem a caminho de um dos espectáculos onde o primeiro-ministro também marcará presença).

Pelo contrário. Fecham os cafés, não abrem os bares, proíbem as discotecas? Então o mais provável é que as festas, ou convívios, ou estudos em grupo, ou chamem-lhes o que quiserem, acabem por se transferir para dentro de casa ou para garagens, isto é, para espaços fechados onde o risco de transmissão é muito maior.

E porque não hão-de ir? Não viram eles as manifestações? As fotografias dos espectáculos no Campo Pequeno? Não assistiram eles à cerimónia pimba no Palácio de Belém a anunciar a Liga dos Campeões?

Atirar a culpa para cima deles é como varrer o lixo para baixo do tapete, é sobretudo tomar medidas fáceis que apelam ao medo do cidadão comum e aos seus piores instintos, é querer desviar as atenções do que é essencial e complicado – as minorias, a pobreza, o caos urbanístico – para o que é fácil – umas acções de polícia.

Para quem conhece este Governo não é nada que surpreenda. É um modo de ser, um modo de vida, tão natural como respirar. Basta pensar que a variação do desemprego é a que se mostra no gráfico abaixo, mas que sobre ela João Neves, secretário de Estado Adjunto, achou por bem dizer que “comparam bem com o resto da Europa”.

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É o que temos. E o melhor é nem começar a falar do que se passou e passa na área da Educação, onde pior não era possível.